18 de fevereiro
de 2015
1964-1985: o fim da ditadura em um país sem democracia
Há
quase 30 anos, o Brasil comemorava o fim de uma ditadura militar que
havia sufocado o país por 21 longos anos. O presidente eleito, Tancredo
Neves, não pôde tomar posse por motivo de doença e foi substituído por
seu vice, José Sarney, um baluarte do governo militar pelo qual havia
sido nomeado governador do Maranhão e presidente da ARENA, partido da
situação. Como sói acontecer com os ratos de porão, Sarney, ao lado de
outros companheiros de partido como Marco Maciel e Antônio Carlos
Magalhães, tinha decidido abandonar o navio que afundava.
José
Sarney, um político sem escrúpulos com ambições literárias, incorporou o
ministério escolhido por Tancredo ‒ um antigo pessedista de tendências
conservadoras com alguns matizes liberais que agradavam à esquerda ‒ que
contemplava habilmente desde alguns setores da oposição até os
interesses do Cidadão Kane brasileiro, o magnata das comunicações
Roberto Marinho.
A
queda da ditadura somente ocorreu ‒ após a votação realizada em um
espúrio Colégio Eleitoral ‒ em seguida a algumas das maiores
manifestações populares que o país já conheceu, com milhões de
brasileiros indo às ruas para pedir o fim do nefasto regime.
Uma
atmosfera de grande expectativa permeava a posse do novo governo e a
internação de Tancredo ‒ com suas subsequentes cirurgias e posterior
falecimento ‒ frustrou a imensa maioria do povo brasileiro. A posse de
José Sarney e a instalação da Nova República, um nome vago do qual hoje
ninguém mais se lembra ‒ até porque não apresentou realmente nada de
novo ‒ estabeleceu um sentimento de desencanto e amargura no seio da
população e mostrou mais uma vez que se as massas produzem a mudança,
são os oportunistas que se aproveitam dos seus resultados.
Embora muitos acreditem que a pressão popular foi determinante para o
retorno à democracia formal, outros pensam que isto ocorreu porque o
poder hegemônico em nosso país, os Estados Unidos da América, deixava de
lado temporariamente a sua política de patrocinar golpes militares e a
instauração de ditaduras militares no subcontinente latino-americano
para ‒ sob o pretexto de adotar um sistema democrático de governo ‒
implantar o modelo
neoliberal de desregulamentação da economia e, com o manto
"modernizador" das privatizações, desatar o processo de pilhagem das
riquezas dos países da região.
Assim como o fim oficial da escravidão em 1888, que açoitou o país por
mais de três séculos, correspondeu aos desejos da Inglaterra ‒ potência
hegemônica da época ‒, o ocaso da ditadura de 1964-1985 atendeu aos
objetivos dos EUA, que se serviram da redemocratização no governo
Sarney, da truculência do governo Collor e, finalmente, da instituição
de uma nova moeda nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso
para influenciar na decisão de desmontar o estado brasileiro e entregar
as suas "jóias da Coroa", como as chamou o comandante do processo em seu
estágio inicial, ao capital internacional.
Olhando em retrospecto, pode-se dizer ‒ na perspectiva destes 30 anos ‒
que foram bem sucedidos. Como o Grande Inquisidor de Dostoievsky, eles
sabiam com certeza que os mais qualificados para controlar os homens
são "aqueles que dominam a sua consciência e dispõem de seu pão".
Assim, à medida que nos deixávamos entorpecer pelas miríades de produtos
de consumo embalados em anúncios de televisão no estilo dos filmes de
Hollywood ‒ eletrodomésticos, celulares, cartões de crédito e até carros
com preços ao alcance do bolso dos menos favorecidos ‒ não percebemos
que nosso país ia sendo progressivamente desnacionalizado e os
dividendos que gerava passavam a ser exportados para paraísos fiscais,
deixando de ser investidos em atividades produtivas.
Ficamos aqui a "ver navios", como se dizia antigamente, ou então a olhar
pateticamente para aparelhos celulares cada vez mais sofisticados e
caros, certamente à espera de alguma grande notícia que jamais chega.
Enquanto um número crescente de cidadãos hoje faz parte das chamadas
redes sociais que ‒ como se sabe, são controladas pelos serviços de
inteligência americanos ‒ somos insidiosamente entorpecidos por rádios,
jornais e canais de televisão sórdidos e mentirosos que deliberadamente
insistem em manipular a opinião pública e impedir que tomemos
consciência da realidade.
Pode-se dizer, com certeza, que no momento em que permitiram a
instalação de um governo formalmente mais democrático no Brasil, com a
instituição de eleições que nunca foram realmente livres da ingerência
do poder econômico, nossos senhores de fora e seus prepostos no país
sabiam que o modelo de dominação já estava efetivamente implantado e
iria perdurar por muito tempo.
Passados 30 anos, esse sistema não apenas perdura como ganhou poder
ainda maior e não somente graças à ação de vendilhões da pátria como
Collor e FHC, contando inclusive com a colaboração de representantes do
chamado campo popular como Lula e Dilma.
Ao
contrário de Vladimir Putin, hoje demonizado pela imprensa dos Estados
Unidos por não se submeter ao diktat neonazista americano na Ucrânia,
Lula e Dilma não foram capazes de reverter nenhuma das privatizações de
Collor, Itamar e Fernando Henrique por mais escandalosos que tenham sido
os seus processos ‒ como efetivamente o foram os do Banespa, da Vale do
Rio do Doce e das empresas telefônicas, entre outros ‒ e ampliaram ainda
mais a ação dos bancos, cujos lucros são hoje assustadoramente
gigantescos e estão envolvidos em quase todas as atividades no país.
Se
no plano econômico, o controle exercido pelo grande capital se acentuou,
o que dizer sobre os aspectos político e cultural, por exemplo?
Em
uma entrevista que me concedeu nos anos 1970, Martín Rodrígues Mentaste,
um importante produtor e distribuidor do cinema argentino, dizia:
‒ O
enorme sucesso de Dona Flor criou uma grande curiosidade em torno do
cinema brasileiro, o que tem aberto muitas portas aos trabalhos da
cinematografia mais moderna e ousada que se faz aqui atualmente.
Não
custa nada perguntar: o que restou desta cinematografia "mais moderna e
ousada"?
Hoje, as políticas públicas adotadas privilegiam o politicamente
correto, favorecendo realizadores que ‒ por estarem ligados a alguns
setores minoritários e representarem grupos de pressão ‒ recebem verbas
substanciais do governo para produzir obras medíocres na sua grande
maioria.
Já o
cinema argentino se situa atualmente, ao lado do iraniano, entre os mais
criativos em atividade. Com toda a bagagem que acumulamos nos anos 60 e
70 do século passado, poderíamos tranquilamente estar nesta lista de
países do Terceiro Mundo dando um novo alento ao discurso audiovisual de
hoje, que vive um momento de pouca inventividade.
E o
que dizer de outras artes em que tínhamos uma grande relevância, como a
música popular?
Nos
anos 1960, a bossa nova de João Gilberto, Tom Jobim, Vinícius de Moraes
e muitos outros mudou a história da música popular do século 20 em todo
o mundo. Sucedida por uma outra brilhante geração onde se destacaram
Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Paulinho
da Viola, Egberto Gismonti, Hermeto Paschoal, além de um número enorme
de grupos, compositores e intérpretes, chegamos aos dias hoje soterrados
pelos ritmos sazonais que, a cada estação, inundam o carnaval baiano
enquanto ouvimos ao longo do ano as ridículas canções sertanejas
entoadas por artistas com nomes grotescos e sem nenhum talento.
Se
em termos culturais não evoluímos tanto, teríamos nos aproveitado da
atmosfera de maior liberdade política para fortalecer as nossas
instituições democráticas, melhorar o retrospecto de direitos humanos,
aperfeiçoar o modelo educacional e oferecer melhores serviços de saúde?
Lamentavelmente, todos os brasileiros sabem que esta pergunta não pode
ser respondida de maneira satisfatória já que as associações
corporativas instaladas no Congresso Nacional ‒ as nefandas bancadas da
saúde, das escolas privadas, às quais vem agora se juntar a bancada da
bala, formada por antigos verdugos do regime militar e outros fascistas
da nova geração ‒ além da notória corrupção, uma praga que infesta o
país desde o seu nascedouro, impedem qualquer ação que ofereça um modelo
mais democrático de sociedade à população brasileira.
Como
no projeto neoliberal a economia prevalece sempre sobre o política, a
consequência mais imediata desses 30 anos de neoliberalismo foi a
demonização da atividade política, amplamente disseminada nas redes
sociais do Facebook e do
Twitter e que obedece a um plano do império americano aplicado
recentemente com sucesso na Ucrânia, embora tenha fracassado em outras
regiões como nas eleições presidenciais do Irã, que deram a vitória a
Mahmoud Ahmadinejad em 2009.
Beneficiários de milionárias doações das grandes empresas ‒ dos quais se
tornam porta-vozes e lobistas ‒ os nossos representantes no Congresso
Nacional, em sua imensa maioria, não desempenham o seu papel
constitucional de representantes do povo, preferindo servir àqueles que
irrigam suas contas bancárias com altas somas ao invés de corresponder
aos desejos daqueles que lhe deram o voto.
No
atual Congresso, recentemente eleito em 2014, tão grande é o poder dos
grupos econômicos que um dos seus representantes máximos acaba de ser
escolhido por ampla maioria para presidir uma Casa que deveria, por
determinação constitucional, abrigar os representantes do povo. Tal
procedimento cria um dos momentos mais sinistros da história política
recente brasileira, já que ‒ na hipótese de vacância do cargo
presidencial ‒ um quidam do jaez de Eduardo Cunha pode chegar a ocupar o
posto mais alto da nação.
Em
30 anos, saímos da ditadura militar e política e fomos progressivamente
sufocados por altas taxas cobradas pelos cartéis nacionais e
estrangeiros, agora privatizados, pelo estamento bancário, verdadeiro
parasita da população e extrator de escorchantes juros, pela
mediocridade dos meios de comunicação que, a começar pela Rede Globo ‒
canal que lidera as pesquisas ‒, transformam os telespectadores em
verdadeiros idiotas e por uma atividade artística empobrecida devido à
falta de criatividade decorrente da censura imposta por patrocinadores
sem nenhum objetivo cultural e pelo viés populista das políticas
públicas.
Trocamos assim a ditadura militar e política pela ditadura econômica,
imposta pelo grande capital que, aliás, nunca deixou de estar por trás
da cena.
Sérvulo Siqueira
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