17 de agosto de 2016

 

A miragem olímpica

A 31ª Olimpíada da Era Moderna, que se desenrola no momento no Rio de Janeiro, demonstra mais uma vez que a competição se encontra muito longe dos ideais do Barão de Coubertin, que as criou em 1896.

Apoiada em patrocínios milionários e envolvida pelos mais diversificados interesses políticos, a competição se transformou hoje num instrumento de propaganda e dominação das antigas e atuais potências econômicas sobre os países do Terceiro Mundo, com os atletas mais qualificados dos países pobres – que enfrentam dificuldades para competir com aqueles de países mais ricos − sendo cooptados para concorrer sob a bandeira da Inglaterra, França, Alemanha, Holanda, Bélgica, Estados Unidos, entre outros.

A imprensa corporativa, sob o influxo das verbas de propaganda das empresas multinacionais, justifica o acontecimento como uma consequência da globalização, escondendo a dura realidade de que os atletas dos países que foram colonizados são obrigados – para terem condições de sobreviver no sofisticado e competitivo meio dos esportes olímpicos − a vestir a camisa das nações que subjugaram seus povos por um longo tempo e a se abrigar sob o patrocínio das multinacionais de material esportivo.

No interior da mais antiga e tradicional potência colonial – a Inglaterra − a situação é ainda mais cruel porque os competidores da Escócia e do País de Gales não têm o direito de representar os seus próprios países e − se quiserem participar do evento − precisam empunhar a bandeira colonialista da Union Flag para possibilitar que a decadente Grã-Bretanha possa ganhar um maior número de medalhas e se apresentar como uma grande potência que não é mais.

Acontece então que, nesta grande sociedade de espetáculo, a televisão espalha por todo o mundo imagens de atletas que ostentam camisetas onde a marca do patrocinador tem muito maior destaque que o nome do seu país participante, em um arranjo muito astuto onde as grandes empresas fabricantes de material esportivo (Nike, Adidas, etc.) acabam sendo ao final as maiores beneficiárias.

Aqui no nosso Bananão, só nos resta assumir a condição de anfitrião onde quem manda são as multinacionais que patrocinam o show junto com o Comitê Olímpico Internacional (COI) – composto pelos notórios senhores dos anéis – como já foram chamados por um jornalista os cartolas da entidade, uma vez que nos cabe apenas oferecer a casa para que eles possam fazer a festa.

Neste grande evento que ocorre de dois em dois anos − em suas versões de jogos de verão e de inverno − o script previamente elaborado somente é quebrado quando algum membro dos países periféricos consegue ganhar uma medalha de ouro e ascender ao clube de elite. Infelizmente, no entanto, países como Cuba – que no passado ousavam competir contra os mais poderosos – são hoje objeto de uma pressão inimaginável sobre sua delegação para que seus atletas desertem e tenham a oportunidade de desfrutar das delícias do capitalismo neoliberal nas nações mais avançadas.

Neste sentido, pode-se dizer que as pressões têm sido muito bem-sucedidas porque a cada nova Olimpíada vê-se negros, asiáticos, africanos, latinos competindo por nações da Europa com as quais não apresentam vínculos de raça ou cultura e nem mesmo de idioma ou costumes, para ter a oportunidade de receber um treinamento qualificado e desfrutar de boas verbas de patrocínio.

Um conluio entre interesses econômicos e políticos que envolve nações e patrocinadores faz com que os atletas mais bem dotados dos países periféricos sejam levados para os Estados Unidos e a Europa, principalmente, onde recebem treinamento para participar das competições internacionais, e os constrange a aceitar uma gentil proposta de cidadania que esses países colonialistas lhes oferecem. A perspectiva de uma vida mais confortável fragiliza ainda mais os laços dos esportistas com seu país de origem e os leva a adotar uma nova nação como sua pátria. Embora nem todos aceitem estas propostas – como a ganhadora da medalha de ouro de tênis das Olimpíadas do Rio, Monica Puig, que recusou ofertas dos Estados Unidos − a grande maioria troca de nacionalidade em busca de dinheiro e fama fácil.

Assim como em outras olimpíadas do passado, o evento realizado no Rio gerou uma espécie de intervenção externa ipso facto na vida do país. Pouco antes da abertura, órgãos do atual governo fantoche que rege no momento a nação divulgaram que uma centena de agências de inteligência dos mais diferentes países estavam participando da segurança dos jogos e soube-se mais tarde que quase dois mil agentes norte-americanos “auxiliavam” os seus colegas brasileiros.

Qual é o efeito que a atuação desses agentes terá no Brasil logo após o encerramento dos jogos, quando uma parte da população provavelmente sairá às ruas para protestar contra o iminente golpe de estado que deve se consumar logo depois? Ficarão por aqui para ajudar o governo ilegítimo que assumirá formalmente o poder ou apenas fornecerão as informações que colheram durante sua estadia?

Sabe-se hoje, por meio de várias análises de diversos especialistas que grandes eventos mundiais, como os jogos olímpicos, oferecem uma oportunidade para que os estrategistas de guerra do Pentágono possam testar suas concepções de contrainsurreição em guerras assimétricas e guerras híbridas, as mais determinantes formas de conflitos bélicos que o planeta deverá apresentar no futuro.

Por outro lado, também causa temor em grande parte da população brasileira – traumatizada pelas sucessivas intervenções militares que o país já sofreu − o conhecimento de que 82 mil homens e mulheres do Exército Brasileiro e das Polícias Civil e Militar do Rio de Janeiro, além de outros efetivos da Força Nacional, Guarda Municipal, Polícia Rodoviária Federal, a própria Polícia Federal e até mesmo de empresas de segurança privada estejam hoje patrulhando as ruas do Rio de Janeiro, quem sabe à procura de um pseudoterrorista que possa servir de bode expiatório para medidas repressivas do governo criptofascista no poder.

Nada disso, é claro, aparece nos meios de comunicação que se empenham em criar uma atmosfera ufanista e falsamente patrioteira mas que não consegue esconder a sua clara subserviência aos interesses políticos e econômicos das empresas estrangeiras (Globo, ESPN, Fox, Band) onde trabalham. Pior ainda, como as emissoras que atuam no Brasil são simples repetidoras, limitam-se a retransmitir as imagens geradas pela produtora credenciada pelo Comitê Olímpico, tendenciosas e claramente favoráveis aos Estados Unidos e seus aliados europeus.

Espantoso também pode ser considerado o fato de que em um evento desta natureza, que movimenta centenas de milhões de dólares, ainda se utilize trabalho de voluntários – em geral exercido por pessoas de baixa renda aos quais não se paga nada – enquanto grandes empresas são recompensadas com vultosas verbas.

Todos esses fatos não representam nenhuma novidade na história dos jogos mas certamente os 31º Jogos Olímpicos que tiveram lugar no Rio de Janeiro no mês de agosto de 2016 ficarão marcados pelo episódio vergonhoso que determinou o banimento da equipe de atletismo da Rússia e pela proibição de participação de toda a equipe deste mesmo país nos Jogos Paralímpicos que ocorrem a seguir.

Sem apresentar nenhuma comprovação para as denúncias de doping de atletas que apresentou e baseado nas informações de um fugitivo da justiça russa que se evadiu para os Estados Unidos e de uma atleta russa reincidente de doping, uma empresa encarregada pelo sinistro Comitê Olímpico de apurar a má conduta dos atletas quanto ao uso de substâncias proibidas propôs que toda a equipe da Rússia fosse proibida de participar dos Jogos o que, depois de configurado como um absurdo completo, finalmente não aconteceu. No entanto, conseguiu-se que a equipe de atletismo fosse impedida de concorrer, fato que veio a beneficiar a participação dos Estados Unidos e da Europa uma vez que muitos atletas russos seriam duros concorrentes dos norte-americanos na disputa por medalhas neste campo.

Ao longo do desdobramento deste obscuro episódio, em que a decisão foi tomada duas semanas antes do início do evento, o COI se eximiu se qualquer responsabilidade e delegou o poder de banir todo um país sem que qualquer evidência fosse produzida a uma organização de pouca credibilidade e mais tarde entregou a decisão para as federações de atletismo. Em decorrência dessa omissão, resultou que – embora não tenha sido banida pelo COI – somente os atletas da Federação Russa poderiam ser impedidos de participar dos jogos e isto sem que nenhuma prova contra eles tenha sido apresentada.

Assim, Elena Isinbayeva, bicampeã olímpica e melhor atleta do mundo no salto com vara que nunca se dopou, foi banida pela Federação Internacional de Atletismo enquanto vários atletas diversas vezes reincidentes no doping, muitos deles dos Estados Unidos e da Inglaterra, não sofreram nenhuma punição.

Desnecessário dizer que os sucessivos erros e omissões do Comitê Olímpico desfecharam um sério golpe na credibilidade dos Jogos Olímpicos do Rio.

Neste cenário nebuloso, torna-se ainda mais difícil ocultar que as razões desse banimento jamais foram puramente esportivas e têm o seu fundamento na reação de Vladimir Putin a um sangrento golpe ocorrido na Ucrânia em 2014 e na subsequente integração da Criméia ao território russo, após a realização de um plebiscito.

Paira ainda no ar a perspectiva de que o banimento da equipe de atletismo russa – embora tenha se concretizado – poderá ter outros desdobramentos legais porque muitos atletas contra os quais não se apresentou nenhuma prova cabal, assim como seus patrocinadores, deverão pedir indenizações milionárias na justiça alegando que a decisão se constitui numa restrição ao exercício da profissão.

Em meio a tudo isto, nós brasileiros – vivendo um momento muito sombrio da nossa história – ficamos aqui como espectadores crentes de que agora somos parte do mundo mais civilizado mas na verdade contemplando apenas uma miragem da sociedade do espetáculo em que o resultado é sempre previsível. O script estará finalmente completo quando a nossa equipe de futebol masculino obtiver no próximo sábado o ainda não alcançado título de campeão olímpico, que virá como um prêmio de consolação pelos sacrifícios que a sociedade brasileira teve que fazer para hospedar o evento.

Neste sentido, o show de abertura das Olimpíadas do Rio pode também ser considerado o coroamento do seu propósito: um pálido desfile de escola de samba, com alguns efeitos especiais emoldurando um discurso populista e colonizado onde ficou evidente a ausência da obra de Villa-Lobos, a pintura de Tarsila do Amaral e Portinari, a grande música popular de Luís Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Noel Rosa, entre outros, além das características das diferentes regiões do país com seu rico folclore, para citar apenas alguns exemplos mais flagrantes.

Pelo visto, somos e vamos continuar sendo por mais algum tempo exportadores das mais variadas commodities para a delícia dos nossos colonizadores: minerais, soja, frutas, madeira, jogadores de futebol, travestis, mulatas e mão de obra barata ou gratuita.

 

Sérvulo Siqueira