14 de fevereiro de 2025

 

As patrulhas ideológicas, ou de como eleger o menos pior

 

Alguém se lembra das patrulhas ideológicas? Nos anos 70 do século passado, um breve mas intenso debate agitou um segmento da esquerda brasileira.

Um setor mais ortodoxo da oposição ao regime militar (1964-1985) acreditou que alguns nomes proeminentes da esquerda poderiam ser cooptados (ou seja, se sentirem inclinados a exercer algum posto nos governos dos generais) e deram início a uma série de chamados à ordem com questionamentos àqueles que consideravam como possíveis adesistas.

A agressividade desses supostos ortodoxos se tornou tão intensa e levou a um comentário do cineasta Carlos Diegues (1940-2025) que, em meio a uma época caracterizada por extremo patrulhamento militar, cunhou a frase patrulhas ideológicas para descrever a conduta desses grupos da oposição.

Ao se constituir como partido político em 1979, o Partido dos Trabalhadores assumiu a bandeira da incorruptibilidade política e em nome da pureza de princípios da oposição recusou qualquer diálogo com setores mais moderados como Ulisses Guimarães, Tancredo Neves, Severo Gomes e outros.  

Foi sob a égide destes princípios que o partido expulsou de suas fileiras dois ilustres membros de sua bancada: os deputados Airton Soares e Bete Mendes por terem votado a favor de Tancredo Neves nas eleições presidenciais indiretas de 1984.

Durante muitos anos, o PT manteve uma posição de não negociar com outros partidos até que – depois de uma aliança malsucedida com Leonel Brizola – celebrou um acordo com o empresário José de Alencar do Partido Liberal, de Minas Gerais, e chegou ao poder em 2002.

Foi então que a imensa maioria da população brasileira, que esperava uma nova proposta para Brasil, sofreu uma grande decepção já que os longos anos de oposição do PT aos governos anteriores de José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique levavam a uma crença de que o partido que chegava ao poder em 2002 teria realmente um projeto de melhor distribuição de renda, uma mais justa repartição da terra nas cidades e no campo, a auditoria da dívida pública e um melhor aproveitamento das imensas riquezas naturais do país.

Nada disso, infelizmente, aconteceu. O governo de Luís Inácio da Silva repetiu o modelo de seu antecessor, aumentou as dotações de um programa do Banco Mundial chamado rede de proteção social e mudou o seu nome de Bolsa Escola para Bolsa Família. Sua política econômica continuou a favorecer amplamente o agronegócio dominado pelo capital estrangeiro, estimulou a agiotagem bancária por meio de um número variado de empréstimos e manteve religiosamente o tripé estabelecido pelo FMI: câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário.

A despeito dos inúmeros escândalos de corrupção, algumas medidas populistas e uma imensa campanha publicitária sugerindo que era preferível o neoliberalismo petista “de face humana” ao neoliberalismo tecnocrático de Fernando Henrique levaram à reeleição de Lula – precisamente contra aquele que viria a escolher como companheiro de chapa em 2022, o notório Opus Dei Geraldo Aidimim – assim como à eleição e reeleição de sua sucessora Dilma Roussef, mais tarde impedida de continuar no cargo em 2016.

A deposição de Dilma – sem a contraposição de protestos populares – mostrou de forma flagrante a falta de qualquer base social do outrora Partido dos Trabalhadores, já então chamado de Partido dos Banqueiros, dados os compromissos que havia assumido com a adoção do programa de governo de seu adversário e a indicação de um funcionário do Bradesco para Ministro da Fazenda.

Seu sucessor, o notório Drácula Michel Temer se constituiu em mais um indicador da preferência de Lula e do PT por alianças com políticos de direita.

Os inúmeros escândalos de corrupção levantados de forma maldosa e muitas vezes fraudulenta pela Operação Lava Jato, combinados ao fracasso contundente das políticas sociais dos governos de Lula e de Dilma, geraram o triste fenômeno Bolsonaro, um insignificante e medíocre político com quase sete mandatos parlamentares sem nenhuma representatividade, cujo governo produziu um sombrio período na nossa história.

Assim como a primeira eleição de Lula em 2002 fez germinar grandes esperanças, sobretudo entre a população brasileira mais humilde, sua volta ao poder em 2023 – após sair da prisão onde permaneceu por quase dois anos – fez emergir as mesmas esperanças.

Muitos chegaram a acreditar que – assim como a volta de Getúlio Vargas ao poder em 1950 levou a uma política mais nacionalista de defesa de nossas riquezas – o retorno de Lula traria um líder político mais comprometido com suas verdadeiras origens.

A volta de Lula ao poder ocorreu em meio a uma conjuntura política diferente da existente em 2003. O boom das commodities, que alimentou alguns programas do PT na época não existia mais e a crise bancária de 2009, seguida pela pandemia fabricada de 2019, criaram uma recessão mundial. No Brasil, políticas entreguistas adotadas pelo governo anterior reduziram as perspectivas de crescimento.

Aqueles que esperavam que o terceiro mandato de Lula traria uma política diferente da adotada por seu antecessor se enganaram redondamente. Impunham-se tomadas de medidas como o fim da autonomia do Banco Central, assim como a retomada da Eletrobrás e da Petrobras, mas nada disso aconteceu.   

Aos clamores para que o novo governo impusesse à Petrobras uma política mais dirigida para o benefício do povo brasileiro, já que o governo tem maioria no conselho de gestão da empresa, Lula respondeu com ações que se voltavam mais para a produção de lucros aos seus acionistas, hoje predominantemente estrangeiros. 

Em relação ao Banco Central, Lula permitiu que seu presidente, com sua política recessiva de juros altos e envolvido em várias negócios ilegais, continuasse no cargo.

Quando se acreditou que – com a saída de Campos Neto do Banco Central ao final de seu mandato – uma nova política monetária seria adotada para a reativação do crescimento, a nomeação de Gabriel Galipolo mostrou que a emenda poderia ser ainda pior do que o soneto, já que uma de suas primeiras medidas foi a elevação da Selic, a taxa básica de juros, na mesma linha de conduta de seu predecessor.  

O mesmo procedimento foi adotadas em relação à Eletrobrás, entregue a empresários sobre quem pairam suspeições de pouca idoneidade e envolvidos em acusações de fraude fiscal.

Nenhuma dessas decisões contribuiu efetivamente para o crescimento da economia do país, mas não há dúvida de que irão enriquecer ainda mais os banqueiros e os dividendos dos investidores estrangeiros, o que tem levado muitos a se perguntar qual será o futuro deste governo, principalmente quando se observa a crescente perda de apoio popular de Lula, até mesmo em regiões tradicionalmente favoráveis como o Nordeste. 

Chama também a atenção que as grandes manifestações populares do país são hoje aquelas compostas pelos partidários da oposição ao governo, em geral de orientação direitista e em muitos casos ligados a Bolsonaro, a nêmesis de Lulinha da Silva.

Questionados por esta flagrante deriva à direita do governo de Lulinha da Silva, muitos petistas responsabilizam o legislativo e a herança maldita do governo anterior, o que vem a ser a repetição exata do mesmo argumento que apresentavam em 2003, para justificar o fato de que o governo de Lulinha da Silva não foi capaz de apresentar uma proposta nova para o nosso país. No entanto, um exame mais acurado mostra que o atual governo teve todos os seus projetos aprovados no Congresso dominado pelo Centrão, a quem vem de brindar com seu apoio na mais recente eleição para a presidência da Câmara.

Se a política econômica de Lulinha da Silva mostra a mais completa submissão do presidente ao capital rentista, sua política para a Amazônia desvenda os seus compromissos cada vez maiores com o imperialismo norte-americano e seus antigos planos de internacionalização da região.

Já tendo participado de duas manobras militares da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) na área, o governo de Lula vem agora pressionando o Ibama para a concessão de licença a uma possível prospecção de petróleo na foz do Rio Amazonas. Lulinha alega que o Ibama está tomando uma decisão contra o governo mas se esquece de dizer que esta decisão – ainda não definitiva – pode ser uma tomada de posição a favor do país, pelas consequências desastrosas que essa concessão irá trazer.

Mais desastrosa ainda, foi a decisão de seu governo de entregar à Ambipar, uma empresa privada altamente suspeita, a gestão de 1,4 milhão de quilômetros quadrados, cerca de 14% do território do Brasil constituídos por áreas indígenas. Ainda mais estranho, foi o fato de que essa concessão ocorreu durante o encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, onde se reúnem os bilionários do planeta, a uma empresa que havia sido multada em R$ 22,5 milhões pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente de Recursos Renováveis (Ibama) em 2024.

Segundo relata a jornalista Bruna Frascolla, “a questão é tanto mais grave porque as terras indígenas já estão sendo administradas por ONGs há muito tempo, e já em 2009 o então deputado Aldo Rebelo denunciava que já presenciara uma ONG impedindo militares brasileiros de entrar em terra indígena. Para piorar ainda mais, a Amazônia, dentro e fora das terras indígenas, está tomada por narcotraficantes, além de extração ilegal de madeira, pedras preciosas e ouro”.

Bruna acrescenta que até o momento, entre a imensa maioria dos congressistas, somente o senador amazonense Plínio Valério e os deputados Filipe Barros e Sílvia Waiãpi, ambos bolsonaristas, trataram do assunto.

O mesmo silêncio do Congresso quanto a esta questão tão grave também ocorreu em relação à construção de uma nova embaixada norte-americana em Brasília, um sinistro prédio com mais de seis andares subterrâneos, que muitos acreditam irá se constituir em um bunker onde várias operações de desestabilização na América Latina serão planejadas. Novamente, dois deputados da base bolsonarista foram os únicos a chamar a atenção para o fato e a pedir uma investigação de alto nível.

Dentre todos os membros do gabinete ministerial de Lulinha da Silva, em sua maioria com qualificação profissional muito baixa, somente a atual ministra da Saúde, Nísia Verônica Trindade Lima, recebeu elogios da Organização Mundial de Saúde, dirigida por um testa de ferro de Bill Gates.

Nísia, uma socióloga, tem sido muito eficaz em impulsionar programas de vacinação em massa para a população – até mesmo para bebês com mais de 6 meses, que não apresentam nenhum risco de contrair a Covid – um procedimento que tem sido condenado por inúmeros cientistas em várias partes do mundo e que tem levado a um número inesperado de mortes precoces de muitos jovens.

Embora a existência da propalada pandemia da Covid-19 tenha sido negada em diversos países e as supostas 600 mil mortes devido à doença já tenham sido atribuídas em mais de 50% aos males do próprio tratamento – ou seja, às vacinas e aos ventiladores, assim como às comorbidades dos mais velhos – este é um debate que ainda não chegou aos meios de comunicação no Brasil, completamente tomados pelo poder econômico da Big Pharma.

Mesmo entre os cidadãos comuns, especialmente entre os petistas, a discussão deste tema é um assunto tabu, podendo resvalar para acusações de ser “contra a ciência”, “partidário da teoria da conspiração” e até mesmo “bolsonarista”.

Estaríamos assistindo a um retorno das antigas patrulhas ideológicas, agora com um novo formato e um outro lema?

Depois de ficar internacionalmente conhecido por sua política externa durante o primeiro mandato, Lula vem perdendo muito prestígio pelas posições assumidas ao longo de seu terceiro mandato, especialmente em relação à Venezuela, cuja entrada barrou recentemente nos BRICS+5, abrindo mão de uma posição de liderança entre os países do Terceiro Mundo e revelando a subserviência de sua política aos ditames do Tio Sam, que deseja se apropriar das maiores reservas de petróleo do planeta. Conquanto tenha declarado seu apoio aos palestinos diante do massacre que sofrem no momento de Israel, comprou equipamento militar de segunda linha do estado sionista.

Lulinha da Silva ainda tem menos de dois anos para cumprir as muitas promessas que fez e que levaram ao seu retorno ao poder. Uma das mais importantes é a sua proposta de recuperação da base industrial brasileira, causada em parte pela política de exportação de commodities de seus dois primeiros governos e que levou à reprimarização da nossa economia, com muitos produtos brasileiros deixando o país in natura (por exemplo, o petróleo) e voltando sob forma industrializada (a gasolina). O mesmo vem acontecendo no agronegócio.

A tática do menos pior, utilizada com sucesso em relação ao governo Fernando Henrique e amplamente repetida agora, poderá não funcionar nas próximas eleições. Desde algum tempo, a direita incorporou novas bandeiras e sua ação de falsa contestação a um sistema que na verdade apoia ganhou muito maior força popular do que as ações da atual esquerda, hoje transformada em esquerda liberal e partidária do politicamente correto. O exemplo mais recente desta força pode ser encontrado na vitória esmagadora que acaba de ocorrer nos Estados Unidos com a eleição de Donaldo Trampo. 

Em menos de dois anos, o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro e o leitor pode reverter as expectativas dos petistas e optar por um outra política do menos pior – já que escolher o menos pior parece ser a sina de nós, brasileiros – e optar por uma outra proposta.

Conta-se que em um diálogo ocorrido na longínqua década de 60 do século passado entre o antigo Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khrushchov e o então primeiro ministro da China Zhou Enlai, o soviético – à guisa de ironia ou para afirmar a sua maior autoridade – teria lembrado a sua condição de descendente de camponeses da Ucrânia em contraposição ao chinês, cuja família esteve ligada ao sistema de poder em seu país antes da Revolução. Zhou, conhecido pela sua perspicácia e elegância no trato com as pessoas, teria então respondido:

Como se vê, ambos traímos as nossas origens!

Se continuar no caminho que adotou – ou na trilha que seus senhores escolheram para ele – Lulinha da Silva não pode esperar nada mais do que se converter em apenas um outro retrato na galeria dos presidentes que traíram as mais legítimas aspirações dos brasileiros por um país autônomo e generoso para com sua imensa e explorada população.

                                                                                     Sérvulo Siqueira

Leia também:

Mais uma traição de Lula (25/10/2024)

Lula tira a máscara (e vira um teddy bear* americano) (11/02/2023)

De São Bernardo do Campo ao Alto de Pinheiros (26/09/2022)

Dilma: um cheque em branco de Lula que o Brasil endossou  E não tinha fundo! (04/06/2014)

As traições da esquerda (19/08/2012)

A fábula do presidente negro e da presidenta búlgara (05/06/2013)

Meias verdades (09/12/2010)

Ocupando o Haiti (04/11/2010)

A vertigem da memória (20/10/2008)