12 de julho de 2018

 

A festa acabou...

 

Até a primeira metade do século 20, houve um relativo equilíbrio entre a Europa e a América no esporte do futebol. No entanto, no início do século 21 os países do hemisfério sul já lideravam em número de vitórias na Copa do Mundo da FIFA com cinco conquistas brasileiras, duas uruguaias e duas argentinas contra três da Itália, três da Alemanha, uma da Inglaterra e uma da França.

A ascensão do futebol da América do Sul, comandada pelo Brasil na segunda metade do século passado, coincidiu com a emergência das lutas de libertação econômica e política dos países do Terceiro Mundo na América, África e Ásia.

Com a implantação do modelo neoliberal no mundo partir dos anos 1980 e o progressivo envolvimento das grandes corporações multinacionais nos proveitos econômicos do jogo, o futebol foi perdendo o seu caráter de arte e habilidade e passou a ganhar características de força e esquematização tática. As etiquetas com as marcas das grandes empresas que são mostradas atrás dos participantes do jogo durante as entrevistas realizadas após as partidas ilustram este caráter estrito de promoção comercial do espetáculo do futebol.

Por sua vez, a FIFA entidade responsável pela sua organização – se tornou uma gigantesca multinacional, criando seus próprios regulamentos e impondo-os até mesmo ao país patrocinador da etapa final da Copa do Mundo.

Como os interesses econômicos das empresas patrocinadoras da Copa se tornaram dominantes, passou-se a buscar o lucro e a vitória dos países mais ricos a qualquer preço. A Europa, que se encontrava atrás na competição diante da América e cujos clubes recebiam enormes patrocínios do grande capital para contratar os melhores jogadores, importou atletas de todas as partes do planeta e foi assim que a França se tornou campeã em 1998 com filhos de imigrantes e um bom número de jogadores vindos do estrangeiro, incorporando assim a habilidade e o talento que lhe faltavam e unindo-os à técnica e ao treinamento tático.

Apesar das eventuais vitórias em 1994 e 2002, a refinada arte do futebol brasileiro – toque de bola, controle da pelota, dribles refinados, exímias cobranças de falta − foram ficando cada vez mais para trás, em grande parte porque nossos técnicos, assumindo uma mentalidade colonizada e defensivista, adotaram o modelo europeu de esquematização de jogo, esquecendo-se de que nós é que os havíamos ensinado a praticar este esporte com beleza e talento.

Este atraso, que tem uma relação direta com o modelo extremamente injusto de distribuição da riqueza em nossa sociedade e o papel cada vez mais subserviente que o Brasil tem desempenhado política e economicamente, se reflete também na nossa produção cultural e na pequena competitividade nos jogos olímpicos. Por causa do caráter monopolístico dos nossos meios de comunicação, há muita dificuldade de acesso às manifestações mais criativas no país e no exterior e – isolados geograficamente em nosso imenso território – não temos sido capazes de absorver as informações do mundo à nossa volta.

Ao permitir que um conglomerado de informação de origem norte-americana moldasse o nosso modo de ver o mundo, elegesse e derrubasse o supremo mandatário da nação, impusesse padrões de moral absurdos e degradantes em que o que conta é “se dar bem”, vencer de qualquer forma, ser rico e ficar famoso, não importando se para isto se tenha que pagar um alto preço psíquico e moral, perdemos os nossos valores éticos se é que algum dia chegamos realmente a praticá-los.

Inevitavelmente, o paradigma de toda esta situação não poderia ser outro senão a figura de Neymar Jr. que, com seu talento virtuosístico e exibicionista, acabou por se converter na epítome negativa do futebol brasileiro, um esporte que já produziu exemplos muito mais brilhantes no passado. Olhando de perto, entretanto, verifica-se que este atleta representa com exatidão o jogador brasileiro de hoje: sem nenhuma formação cultural ou qualquer vínculo com seu país, educado em péssimas escolas, muitas vezes vivendo em um ambiente violento e que espera apenas por uma oportunidade para deixar o país e exibir o seu talento nas praças da Europa ou até mesmo da Ásia.

Situação idêntica vivem hoje, assim como viveram no passado, os ancestrais dos atletas da maior parte dos países da Europa recrutados para defender as nações que por um longo tempo oprimiram os seus locais de origem. Como os nossos jogadores, esses atletas perdem progressivamente seus vínculos com a cultura de seus povos de origem. De forma astuta, os dirigentes futebolísticos da Europa – calcados numa vasta experiência de mais de 500 anos de colonialismo e após ter importado os melhores craques da América Latina – incorporaram então ao seu elenco os atletas africanos  e asiáticos assim como os filhos de imigrantes que foram obrigados a cruzar grandes espaços fugindo da miséria e de guerras provocadas pela OTAN e os Estados Unidos.

Baseados na observação de inúmeros exemplos pretéritos, já sabíamos desde há algum tempo que, em razão de sua constituição física privilegiada, os jogadores africanos viriam a se tornar os melhores praticantes do futebol no futuro. Muito bem dotados fisicamente, rápidos e habilidosos, só lhes faltava uma melhor organização tática e a incorporação de valores menos individualistas associados à prática de um esporte mais coletivo.

Com 19 jogadores de origem estrangeira em seu elenco de 23, a França – conduzida por sua expertise forjada na criação de Legiões Estrangeiras, constituídas para defender seus interesses coloniais, e assim como já o havia feito em 1998 – alcançou seu propósito e chegou com sucesso às finais da Copa do Mundo na Rússia. Da mesma forma, a seleção belga – com seus 10 atletas de origem estrangeira – também obteve excelentes resultados, dentre eles uma histórica vitória sobre a seleção brasileira. Coincidentemente, em cada uma das equipes há quatro descendentes de imigrantes congoleses, um povo que no início do século 20 sofreu o que Adam Hochschild, em seu livro O fantasma do Rei Leopoldo, considerou o maior genocídio da história, superior até mesmo ao massacre dos judeus pelos nazistas.

Em seu relato sobre este genocídio que custou a vida de 30 milhões de congoleses e compreendeu um sem números de mutilações de pernas e braços dos nativos, Hochschild lembra o assassinato do grande líder congolês Patrice Lumumba, em janeiro de 1961, quando um agente da CIA vagou durante a noite pelas ruas de Elizabethville, hoje Lubumbashi, em busca de um lugar onde pudesse deixar o seu corpo. Lumumba havia caído em desgraça diante dos países coloniais do Ocidente ao buscar o apoio da União Soviética para seu projeto de libertação do Congo. Os americanos acabaram finalmente encontrando um títere que servisse aos seus interesses na figura de Joseph Desirée Mobutu, um oficial subalterno da Force Publique colonial, e o mantiveram no poder por trinta longos anos. Os oito congoleses que na noite da última terça-feira, dia 10 de julho, se digladiaram em São Petersburgo pela possibilidade de disputar a final da Copa do Mundo certamente devem ter pouca relação com este fato mas é inegável que cumprem hoje o mesmo papel que desempenhavam os gladiadores da Roma dos Césares – igualmente recrutados na colônias romanas da África e da Ásia – e que encantavam a população do império com sua força e habilidade. 

Da mesma forma, para Neymar Jr. e seus companheiros, o Brasil real é também uma referência muito distante uma vez que – assim como os ancestrais dos descendentes dos congoleses da França e da Bélgica – também emigraram em busca de melhores condições de vida. É bem verdade que, ao contrário dos imigrantes − que recebem em muitos casos um tratamento desumano dos países aos quais se dirigem, quando não são imediatamente deportados pela polícia de fronteira – nossos atletas são gratificados com belos salários que lhes proporcionam um alto padrão de vida.

Agora que mais este grande show da sociedade do espetáculo está se desvanecendo, o Brasil retorna à sua realidade básica: uma sociedade em frangalhos depois de um golpe de estado que derrubou um governo legítimo e produziu uma crise econômica de grandes proporções e a entrega do patrimônio do país ao capital estrangeiro, assim como políticas que compõem um tenebroso cenário onde não falta sequer a possibilidade de vitória de um mastodonte fascista nas próximas eleições (se houver) de outubro deste ano.

Assim como exportamos um grande número de commodities: soja, café, minerais de última geração, petróleo, passamos nos últimos anos – devido à má distribuição de renda da nossa sociedade – a exportar também mão de obra de qualidade como meninos com 12 anos ou mais que possuem alguma habilidade com o futebol, são treinados por clubes europeus e asiáticos e, assim, dedicam toda a sua vida útil como profissionais a serviço das organizações que os importaram.   

Nas inúmeras mesas redondas, os especialistas de plantão insistem − usando a mesma linguagem da globalização neoliberal − que o futebol não é mais o mesmo e que como não há mais tantos craques o que conta hoje no esporte é ocupar todos os espaços e aproveitar as falhas do adversário. No entanto, para nós do Terceiro Mundo que por séculos sofremos a pilhagem de nossas riquezas pelo colonizador europeu, qualquer papel secundário num cenário onde já fomos os principais protagonistas é sempre constrangedor.

Em uma letra jamais cantada da música Gran Circo, de Milton Nascimento e Márcio Borges, dizia-se que “a revolta vai se mostrar no arame”.

        Infelizmente, ainda não foi desta vez.

 

  

Sérvulo Siqueira