11 de setembro de 1992
O
Criador e a Criatura
Segundo se depreende, a
iniciativa do contato deveu-se a uma visita que Roberto Marinho fez a
Collor do Palácio do Planalto, o que motivou uma carta de agradecimento
do Presidente. Para além de outras interpretações ou diferentes níveis
de leitura que psicólogos, psicanalistas e semiólogos possam fazer do
tom extremamente amável e cordial do texto – o que por si só já
revelaria um contraste flagrante com a retórica habitualmente altiva e
guerreira do Presidente em seus pronunciamentos públicos
– o que chama a atenção na carta
é o modo como Collor procura tocar insistentemente no tema do
"impeachment". Depois de observar que o "Doutor Roberto", durante sua
visita, não abordou temas políticos, Collor tece alguns comentários
sobre o livro "Trajetória Liberal", que o autor lhe ofertou com os votos
de que encontrasse na leitura "uma pausa na "tormenta" que agora
enfrenta". Seguem-se então algumas
observações que Collor faz a propósito de artigos escritos por Roberto
Marinho sobre a CPI da Corrupção do Governo Sarney, da qual o comandante
da Globo foi um feroz opositor. Ao traçar um paralelo entre a CPI do
Governo Sarney e a CPI do PC, Collor deixa propositalmente de mencionar
que naquele momento do nosso passado recente ele e Roberto Marinho
estavam em campos opostos. Como se sabe Collor acabou se tornando o
grande beneficiário das inúmeras denúncias levantadas pela CPI da
Corrupção e que levaram a sua tonitruante campanha pela moralidade na
vida pública brasileira e sua notória "caça aos marajás". Fernando
Collor lembrou também outra CPI, aquela criada para apurar a famosa
associação da Rede Globo com o grupo norte-americano Time-Life tomando
como paradigma o que considera uma atitude de "absoluta correção" do
empresário, o que teria levado o Presidente ao ponto de vista de que"
seus acusadores é que praticam atos criminosos", Collor considera que o
mesmo está se passando agora com seus adversários. Em sua conclusão,
o Presidente pede que o "Amigo tenha a generosidade de compreender que o
estado de espírito em que encontro levou-me a estender esta carta além
do seu objetivo... "Torna-se perceptível, através da leitura da carta,
que aquilo que não tentou, ou não conseguiu, em seu encontro
vis-à-vis, o Presidente procurou obter através de sua carta, ou
seja, obter o apoio do poderoso empresário em sua luta contra o
impeachment. A resposta do Doutor Roberto não
é menos amável ou cordial, embora elusiva, e rememora os encontros entre
os dois que antecederam ao lançamento da candidatura de Fernando Collor
de Melo à Presidência em 1989. No que parece ser a primeira vez em que
alguns fatos se tornam públicos, Roberto Marinho recorda para o
Presidente Collor e revela de forma explícita para nós que, durante 20
dias, ele e o futuro candidato conversaram sobre nosso país sem que
Collor "revelasse qualquer aspiração concreta de caráter político". No segundo período da carta, o
empresário lembra que "sempre dialogando em torno dos problemas que nos
assolam, sem uma palavra explícita sobre sua rota, você subliminarmente
levou-me a perguntar quando iniciaríamos a sua campanha para a
Presidência da República. A resposta, sem ênfase, foi: ”Quando o senhor
quiser". Continuando em suas rememorações, Roberto Marinho acrescenta
outros dados que evidenciam as estreitas ligações entre o atual
Presidente e as Organizações Globo. –
"No dia seguinte, depois de ter conversado com os meus filhos e
com os companheiros do Globo e da Rede Globo, combinei junto com você a
data". Após evocar a campanha vitoriosa
de Collor, Roberto Marinho observa que "a Nação retém os lances dos seus
êxitos, suas vacilações nestes dois anos" e conclui pela continuação da
nossa sólida amizade, com respeitosas franquezas de parte a parte, mesmo
neste instante dramático da vida brasileira". Duas conclusões podem ser tiradas
a partir de uma leitura superficial da resposta de Roberto Marinho. A primeira é a que
aponta para o fato de que o "Doutor Roberto" parece lembrar ao
Presidente que seu sucesso se deu quando Collor assumiu uma postura
menos altiva e arrogante, o que não parece ser a sua característica nos
dias de hoje. A resposta "quando o senhor quiser", dada pelo jovem
Collor quando ainda postulante a candidato, não condiz com o atual
discurso do Presidente. Seria exaustivo e
de certa maneira precipitado esmiuçar as razões da erosão do prestígio
de Collor, desde sua ascensão ao Poder, com seus apregoados 35 milhões
de votos, até os dias de hoje, e sua clara dificuldade em obter os
minguados votos na Câmara necessários para evitar a sua derrocada. O
certo é que mesmo antigos aliados, como o pragmático Roberto Marinho
– que sempre cerrou fileiras ao
lado do Poder – parecem
faltar-lhe neste momento. No entanto, não seria demais lembrar que foi o
fiel escudeiro de Collor, o Deputado Paulo Otávio, quem organizou um
consórcio, ao lado do empresário paulista João Carlos Di Gênio, para
adquirir a Rede Manchete, de Adolpho Bloch. Tudo isto com o beneplácito
– é claro
– da União, à quem a empresa
devia quase 100 milhões de dólares. Exatamente como ocorreu com a compra
da Vasp, uma operação considerada hoje como tendo sido tramada por PC
Farias. No caso, o que foi exatamente que abortou a transação da venda
da Manchete? O próprio Dr. Roberto Marinho levantou dúvidas sobre a
verdadeira natureza do negócio. Estes não parecem,
entretanto, ter contido os ânimos do grupo ligado a Collor, já que há
igualmente, muitas dúvidas sobre as operações e a formação da Rede OM,
em torno da qual pairam também – de forma quase onipresente
– a figura de PC Farias e seus
"fantasmas". Entre as muitas interpretações acerca da ascensão
retumbante e do que parece representar, hoje, a queda vertiginosa de
Fernando Afonso Collor de Melo, está aquela que o identifica como uma
espécie de Lúcifer, um anjo superior que se revolta contra seus
criadores. Ou, então, na versão mais irônica de Leonel Brizola: a de que
Collor poderia ser comparado a uma noviça rebelde, que as madres
superiores resolvem punir por sua ousadia. O que parece claro
é que o impeachment em curso não teria sido possível sem o apoio
de elites poderosas da sociedade brasileira. Ao tentar açambarcar, de
uma forma que nem sempre pareceu lícita, um ponderável e estratégico
segmento da economia do País –
compreendendo, entre outros, redes de comunicação de massa, empresas de
transporte, empreiteiras, construtoras –
além de ocupar postos-chave em altos escalões da Administração, Collor e
sua "República de Alagoas" açularam tanto a fúria dos cães raivosos do
capitalismo selvagem brasileiro quanto a justa indignação da consciência
moral mais íntegra da Nação. Ao mesmo tempo, sua política econômica de
recessão, fome e miséria, posta sucessivamente em prática por Zélia e
Marcílio, não resgatou as esperanças dos "descamisados e pés descalços
", de quem recebeu os seus 35 milhões de votos. Não lhe restou mais
nada, a não ser a sua famigerada "tropa de choque". Esperemos que, desta
vez, os cordeiros – já que eles
certamente não comerão os lobos, mesmo porque são vegetarianos
– ao menos consigam sobreviver e
não morram de fome.
Sérvulo Siqueira |