6 de março de 2021

Pfizer faz exigências absurdas para vender a sua vacina 

 

Matéria do Bureau de Jornalismo Investigativo, publicada no site Science The Wire e assinada por Madlen Davies, Rosa Furneaux, Iván Ruiz e Jill Langlois, conta que a Pfizer está sendo acusada de interferir no modo como os governos da América Latina administram a aplicação da vacina COVID-19 e que vem pedindo a alguns países para que disponibilizem ativos soberanos − edifícios de embaixadas e bases militares – como garantia do custo de futuras ações legais. Essas exigências já causaram um atraso de três meses na entrega da vacina a um determinado país da região.

Na Argentina e em outro país que não foi revelado, funcionários do governo assinaram um acordo secreto com a Pfizer, que exigiu total isenção de responsabilidade em ações que venham a ser movidas por cidadãos desses países após terem sido vacinados. Em relação à Argentina e o Brasil, a Pfizer considera que ativos soberanos devem ser colocados como caução para qualquer ação compensatória por possíveis danos à saúde causados pela vacina.

Um funcionário presente em reunião ocorrida em um país que não pode ser identificado descreveu as demandas da Pfizer como um ato de “grande interferência” e afirmou que o governo sentiu que estava sendo objeto de um pedido de resgate para que sua população pudesse ter acesso aos imunizantes.

Muitos observadores vêm inclusive alertando para o surgimento de um sistema discriminatório, uma espécie de apartheid da vacina, no qual países do Ocidente serão inoculados anos antes de regiões mais pobres. No momento, especialistas legais já começam a levantar suspeitas de que as exigências da Pfizer se caracterizam como um abuso de poder.

A Pfizer vem estabelecendo conversações com mais de 100 países e organizações supranacionais e nesse sentido chegou a um acordo com nove países da América Latina e do Caribe: Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, México, Panamá, Peru e Uruguai. Os termos desses acordos não foram revelados.

Muitos governos estão oferecendo isenção de qualquer responsabilidade legal para os fabricantes que lhes fornecem a vacina. Isto significa que um cidadão que sofrer um efeito adverso após ter sido imunizado pode impetrar uma ação contra o fabricante e, se for bem sucedido, o governo seria obrigado a pagar uma compensação. Em alguns países, as pessoas podem até mesmo se utilizar de estruturas específicas sem ter a necessidade de recorrer a um tribunal.

Este tem sido um procedimento típico para o caso de vacinas administradas em uma pandemia. Em muitos casos, os efeitos adversos são tão pouco comuns que estes não aparecem nos testes e somente se tornam evidentes quando centenas de milhares de pessoas já receberam a vacina, como ocorreu no caso da H1N1, que provocou narcolepsia. Na atualidade, como as vacinas foram desenvolvidas em um período muito curto, os governos se prontificaram a cobrir o custo da compensação.

No entanto, funcionários do governo da Argentina e de um país cujo nome não foi revelado contaram ao Bureau que os requisitos da Pfizer foram muito além dos apresentados por outras empresas fabricantes de vacina, que também exigem não ser responsabilizadas por efeitos adversos inesperados, atos de negligência, fraude ou malícia ou, até mesmo, por ações vinculadas a práticas da companhia como a aplicação da vacina incorreta ou erros cometidos durante a fabricação.

Para o professor Lawrence Gostin, diretor do Centro de Colaboração com o Direito de Saúde Nacional e Global da Organização Mundial de Saúde "alguma proteção de responsabilidade é garantida, mas isto certamente não se aplica à fraude, negligência grosseira, má administração e incapacidade de seguir boas práticas industriais". Para Gostin, "as companhias não têm direito de requerer uma isenção de responsabilidade para estas condutas".

Mark Eccleston-Turner, professor conferencista sobre legislação global de saúde na Keele University, diz que a Pfizer e outros fabricantes receberam patrocínio do Estado para pesquisar e desenvolver as vacinas e pretendem agora colocar os custos decorrentes dos possíveis efeitos adversos nas costas dos governos, inclusive aqueles que possam ocorrer em países de renda baixa e média.

Sabe-se que a BioNTech, empresa parceira da Pfizer, foi agraciada com um patrocínio do governo alemão da ordem de 450 milhões de dólares e que o governo norte-americano acordou, em julho de 2020, com a encomenda de 100 milhões de doses, no valor aproximado de US$ 2 bilhões, mesmo antes da vacina ter entrado em sua fase final de testes. A expectativa da Pfizer é de que a venda das vacinas possa lhe render a soma de 15 bilhões de dólares em 2021.

Segundo Eccleston-Turner, parece que a Pfizer “está tentando obter o máximo de lucro e minimizar o seu risco ao longo de todo o processo de desenvolvimento e aplicação da vacina”.

─ No entanto, este processo já foi altamente financiado. Portanto, subsiste apenas um risco mínimo para o fabricante envolvido nesta operação ─ conclui.

O ministro da Saúde da Argentina começou a negociar com a companhia em junho do ano passado e o Presidente Alberto Fernández teve um encontro com o diretor executivo da Pfizer no país no mês seguinte. Durante os encontros subsequentes, a Pfizer pediu para ser indenizada por custos decorrentes de possíveis ações legais. Embora isto nunca tenha ocorrido anteriormente, o Congresso argentino aprovou uma nova legislação para que isto possa acontecer. Entretanto, segundo um funcionário do escritório da presidência, a Pfizer não ficou satisfeita com os termos da nova lei. Como o governo acredita que a empresa deveria ser responsabilizada por atos de negligência ou malícia, e com o objetivo de remediar a situação Fernández propôs então emendar a legislação para tornar claro que o termo “negligência” significa problemas na distribuição e entrega das vacinas. Segundo o funcionário, a companhia novamente mostrou-se insatisfeita com a proposta e solicitou que o governo emendasse a lei por meio de um decreto. Alberto Fernández, então, finalmente recusou.

Para o funcionário, que forneceu mais detalhes sobre a negociação, a Argentina “poderia compensar os efeitos adversos da vacina mas não o fará se a Pfizer cometer um erro”.

─ O que aconteceria se, por exemplo, a Pfizer interrompesse sem querer a cadeia de transporte e armazenamento da vacina em uma temperatura abaixo de 70º e um cidadão decidisse processá-la? Não seria justo que a Argentina pagasse por um erro da Pfizer.

O funcionário conta que as conversas se tornaram rapidamente tensas e complexas:

─ Ao invés de ceder em alguns pontos, a Pfizer fazia cada vez mais demandas. Além de mudanças na nova lei, a empresa exigia que a Argentina contratasse também um seguro internacional para compensar a companhia por possíveis processos decorrentes de suas ações, procedimento que também foi solicitado aos países por ocasião da disseminação da H1N1.

No final de dezembro, a Pfizer fez uma nova proposta inesperada para que o governo disponibilizasse seus fundos soberanos – o que poderia compreender também reservas do banco central, prédios de embaixadas ou bases militares – como garantia.

O funcionário conta que “o governo se propôs a fazer um pagamento adiantado por milhões de doses e aceitou também o seguro internacional mas a última demanda foi inesperada: a Pfizer exigia que os ativos soberanos da Argentina fizessem parte do apoio legal”.

─ Consideramos que esta era uma exigência absurda, que somente foi feita quando a dívida externa estava sendo negociada, mas tanto naquele episódio quanto agora ela foi imediatamente rejeitada.

Bom policial, mau policial

O fracasso nas negociações fez com que os cidadãos da Argentina venham a ter acesso às vacinas V da russa Sputnik e da AstraZeneca, além daquelas que serão entregues pela Covax. O governo também está em negociações com a Moderna, a Sinopharm e a CanSino.

─ A Pfizer se conduziu muito mal na Argentina, ─ afirma Ginés González Garcia, ministro da Saúde do país.

─ Sua intolerância conosco foi tremenda.

As mesmas exigências foram feitas ao ministro da Saúde do Brasil. A Pfizer pediu para ser indenizada e demandou que o país colocasse seus ativos soberanos como caução e que criasse um fundo de garantia com dinheiro depositado em um banco estrangeiro, além de solicitar que todos os litígios fossem decididos na Justiça norte-americana. No último mês de janeiro, o ministro recusou esses termos e descreveu as suas cláusulas como “abusivas”.

Funcionário de uma outra nação latino-americana, que não pode ser identificada, descreveu as negociações com a Pfizer:

─ As conversas começaram em julho do ano passado, antes da aprovação da vacina para seu uso experimental. Já havia então a percepção de que os negociadores apresentavam uma rotina de “bom policial, mau policial”, com o “mau policial” pressionando o governo para comprar mais doses. Você tinha sempre esta senhora colocando muita pressão e falando com frequência:”─ Compre mais, vocês vão matar as pessoas, muitas pessoas vão morrer por causa de vocês!”.

As conversas ficaram pesadas quando a companhia solicitou uma indenização adicional. O governo nunca havia concedido nenhum tipo de indenização antes disto e não queria suspender qualquer responsabilidade da empresa, mas a Pfizer afirmou que essa questão não era negociável.

Uma das razões por que governo desejava as vacinas da Pfizer residia no fato de que a companhia havia dito que poderia fazê-las num tempo recorde. No entanto, a empresa veio a informar que somente tinha condições de vender dois bilhões de doses durante este ano. Em razão disso, tentou mudar o prazo de entrega das vacinas ainda na fase de negociação do contrato. Um acordo acabou sendo celebrado ao final de uma negociação que se prolongou por três meses.

O funcionário afirma que a empresa, em nenhum momento, deixou espaço para uma contraproposta.

─ Era pegar ou largar.

O funcionário espera que “daqui a cinco anos, quando a confidencialidade dos acordos for encerrada, nós iremos saber o que realmente aconteceu durante essas negociações”.

Questionada pelos jornalistas sobre suas práticas pouco éticas, a Pfizer respondeu que, juntamente com sua parceira BioNTech, está “firmemente comprometida a trabalhar com os governos e outras partes interessadas para assegurar uma distribuição equitativa e acessível à nossa vacina contra a COVID-19 para todos os povos do mundo”. (Tradução de Sérvulo Siqueira)

Nota do tradutor: No momento em que o governo brasileiro anuncia que acaba de celebrar um acordo com a Pfizer, resta aguardar possa divulgar os termos desse acordo e quais as concessões que foi obrigado a fazer à empresa farmacêutica norte-americana.