5 de outubro de 2018
Uma terra em transe
Há 29 anos, nesta mesma época do ano, o Brasil vivia uma
situação completamente diferente, embora o clima populista
do processo eleitoral – com Fernando Collor se dirigindo à população
mais pobre, “os descamisados”, e sua pregação contra a
corrupção e os chamados “marajás” – tivesse pontos de
semelhança com os dias de hoje.
A campanha, especialmente a de Lula, transcorreu num clima
de festa e celebração democrática. Os slogans cantados aos
quatro ventos: Lula
lá e Sem medo de
ser feliz pareciam prenunciar um novo tempo num país que
desde 1960,
há também exatos 29 anos, não escolhia seu presidente.
Da mesma maneira, Leonel Brizola, o outro candidato das
forças populares, também galvanizava um grande apoio da
população em razão de seu longo e coerente compromisso com
os menos favorecidos da nação.
Resultou que – por uma margem muito pequena – Lula alcançou
uma votação que o levou ao segundo turno com Collor. E
ocorreu então que – ao final de uma campanha sórdida em que
não faltaram os golpes mais sujos − Collor obteve
aproximadamente três milhões de votos a mais do que Lula e
se tornou presidente.
A derrota – ocorrida em uma situação não muito clara –
serviu no entanto para catapultar o prestígio do Partido dos
Trabalhadores e atraiu a atenção de uma parcela ainda maior
da população para o projeto da agremiação e em 2002, 13 anos
depois, o PT iria chegar ao poder no Brasil com o apoio de
mais de 60% da população.
Passados 15 anos desde essa vitória, o PT volta pela sétima
vez consecutiva a pedir o voto popular para ocupar a
Presidência da República do país. E, ao contrário de 1989,
não tem mais nada a oferecer a não ser um vago programa
assistencialista, a figura distante de seu líder máximo – hoje
preso numa cela da Polícia Federal em Curitiba – e um
candidato inexpressivo que parece destituído de luz própria.
Como ao longo desses 29 anos o Brasil mudou, seu adversário
– embora apresente um discurso populista calcado no combate
à imoralidade pública – representa a pior expressão do
autoritarismo que o país conheceu em toda a sua história.
Praticando o discurso da antipolítica, Jair Bolsonaro é na
verdade a pior expressão desta atividade pública: grosseiro, ignorante
(é raro encontrar uma frase dita por ele que não contenha
erros de português), o ex-capitão do Exército em sua longa
carreira de deputado se caracterizou pela mediocridade e
estultice de sua conduta.
Apenas recentemente emergiu de seu quase anonimato, quando
passou a obter uma grande cobertura dos meios de comunicação
em suas denúncias contra os desacertos que os sucessivos
quatro governos do PT cometeram na condução política da
nação: o aparelhamento do Estado – já observado nos governos
Fernando Henrique Cardoso −, os compromissos de campanha não
cumpridos e os graves casos de corrupção de membros do
partido com seus aliados, que justificam seu apelo a
uma crescente truculência no combate à criminalidade.
Recebeu então a adesão da classe média, que se sentia
ameaçada pelas políticas do PT de defesa das empregadas
domésticas, das cotas na universidade, dos direitos das
minorias, já que isto era visto pelas classes mais
favorecidas como podendo levar a uma modificação no longo processo do
apartheid
brasileiro, que vem permanecendo desde os primórdios da
colonização.
Repete-se uma vez mais o conflito entre uma proposta de
integração da imensa maioria da população à riqueza
produzida no país e desfrutada apenas por alguns poucos e
outro projeto – que já viceja por séculos – de exclusão
da população predominantemente pobre, negra, nordestina
que não encontra outro modo de sobreviver senão por meio da prestação
de serviços mal remunerados à classe
dominante.
Neste momento altamente dramático do país e a poucas horas do início
da votação, todos os conflitos desta sociedade muito injusta
emergem de forma consciente ou inconsciente na conduta e nas
preferências da população, assim como a representação que
nós brasileiros criamos dessas contradições.
O filme Terra em
Transe (1967), do cineasta Glauber Rocha, uma parábola
sobre o país imaginário de Eldorado situado no Oceano
Atlântico, como enuncia a narrativa, representa um conflito
entre dois projetos políticos aparentemente contraditórios
para a nação. O poeta/jornalista/ativista político Paulo
Martins (Jardel Filho) transita entre o ambicioso e sagaz
Porfirio Diaz (Paulo Autran) e o inseguro Felipe Vieira (José Lewgoy) −
que parece ter bons propósitos mas faz muitas
concessões aos poderosos – e termina por se desencantar com
ambas as propostas.
Enquanto Diaz, que despreza a população mais pobre, prega a
purificação do “sangue dos vermes” para que assim possamos
“lavar a nossa alma”, Paulo Martins reflete que “este povo
alquebrado, sem vigor, este povo precisa da morte mais do
que se pode supor”. E conclui, de forma sombria:
─ A morte como fé, não como temor.
Quando Sara (Glauce Rocha) o repreende por ter jogado Vieira
no abismo, Paulo responde:
─ O abismo está aí. A culpa não é do povo. Sai correndo
primeiro para quem lhe acena com uma espada ou uma cruz.
Executemos, pois, nosso dever histórico.
Por sua vez, Porfirio Diaz anuncia :
─ Meu destino é Deus. A Minha bandeira é o trabalho. A
pátria é intocável. A família é sagrada. Uma força moverá a
história.
Ao final, enquanto Vieira é deposto e Paulo Martins morre
fuzilado pelos órgãos da repressão, Diaz − um corrupto testa
de ferro das multinacionais que vão tomar o país em
associação com o empresário Júlio Fuentes (Paulo Gracindo),
que anteriormente dizia ser de “esquerda” − se faz coroar
cercado por áulicos e proclama:
─ Aprenderão, aprenderão! Dominarei estas terras. Botarei
estas histéricas tradições em ordem. Pela força, pelo amor
da força. Pela harmonia universal dos infernos. E chegaremos
a uma civilização...
Já dizia Pound que os poetas são a antena da raça. Teria o
cineasta e poeta baiano antecipado um cenário que hoje
atormenta esta nação?
Sérvulo Siqueira
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