��
1° de setembro de 2016
Agosto no Brasil: da tragédia de 1954 à farsa de 2016
O Brasil, que já assistiu à posse
de Dutra, Café Filho, Castelo Branco, Costa e Silva, Médici,
Geisel, Figueiredo, José Sarney, Collor, Fernando Henrique,
viu ontem a entronização no poder de mais uma triste figura
do nosso cenário político: o ex-suplente de deputado,
ex-secretário de Segurança de São Paulo, ex-vice-presidente
da República e atual Ficha Suja – portanto, inabilitado para
o exercício de qualquer cargo público
– Michel Temer como novo presidente da República.
Nenhuma dessas figuras demonstrou
estar à altura dos desafios exigidos por um país das
dimensões e tão cheio de contradições como o nosso e todos
fracassaram em seu propósito.
Este deverá ser certamente o caso
de Temer, que desembarca no comando da nação em decorrência
de um golpe de estado parlamentar e sob o estigma da total
falta de credibilidade.
A ascensão desse medíocre
político de Tietê, São Paulo, que não teve mais votos do que
o estritamente necessário para se eleger deputado federal
por seu estado, somente se tornou possível em razão de uma
ampla conspiração que envolveu órgãos de inteligência e
empresários americanos e contou com a ativa participação de
todos os meios de comunicação empresariais do Brasil
liderados pela Organização Globo, empresários vinculados ao
agronegócio e aos bancos nacionais e estrangeiros e se
concretizou por meio do apoio de mais de 300 parlamentares
acusados de corrupção e quase 50 senadores envolvidos em
práticas escravagistas, assassinato, lavagem de dinheiro,
peculato, extorsão, tráfico de influência, recebimento de
propinas, formação de quadrilha e outros crimes de colarinho
branco que tiveram em muitos casos o beneplácito da
cumplicidade ou da silenciosa omissão do Judiciário.
Dada a complexidade de todos os
tentáculos em que se desdobrou esta vasta conspiração e as
imensas riquezas do Brasil que serão oferecidas como
recompensa à pilhagem a ser realizada pelos golpistas,
acredita-se que muitas dezenas de bilhões de dólares devem
ter sido dispendidos para a compra e o suborno dos diversos
agentes desestabilizadores do governo deposto.
Se como lembrou a subsecretária
de Estado americana, Victoria Nuland, o governo ianque
gastou cinco bilhões de dólares para derrubar o presidente
Viktor Yanukovych da Ucrânia em 2014, quanto teria sido
gasto no Brasil – um país muito maior e mais rico – para
derrubar Dilma Rousseff?
Em razão deste compromisso, o
presidente impostor que ora assume o cargo terá que impor
muitos sacrifícios à população para obter os recursos
necessários que serão distribuídos aos participantes deste
golpe. Terá ele condições de cumprir as promessas que fez as
seus patrocinadores, considerando os desafios que terá de
enfrentar tanto em sua base de governo quanto da oposição
que acaba de derrotar?
Como dificilmente seu projeto de
redução de direitos sociais, extinção das leis trabalhistas,
reforma da Previdência Social, privatização dos principais
ativos econômicos do país como Banco do Brasil, Caixa
Econômica, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES) e as reservas petrolíferas do pré-sal
encontrarão uma ampla acolhida na população, terá muitas
dificuldades para saldar suas dívidas com os grandes
conglomerados econômicos que estão por trás de sua ascensão.
Ao mesmo tempo, fatos recentes
ocorridos desde o incisivo discurso de Dilma Rousseff no
Senado na última segunda-feira, dia 29 de agosto, e a
circunstância de que surpreendentemente não perdeu seus
direitos políticos, podem ter produzido uma alteração no
cenário brasileiro que a considerava completamente
derrotada.
De forma paradoxal, o que se vê
no momento é exatamente o contrário. Enquanto Temer
– agora visto pela população como um traidor a seus
antigos aliados e capaz de gestos bastante sórdidos – assume
em um cenário de grande crise com a obrigação de administrar
uma economia arruinada e tendo que prestar contas à nação
por suas propaladas propostas de reforma e "modernização", a
presidente afastada ganha a postura de alguém que foi vítima
da conspiração de um sindicato de ladrões após ter permitido
todas as investigações contra a corrupção no país e termina
condenada sem a comprovação de qualquer crime. Por sua
tenacidade e coerência, revela qualidades de caráter que
naturalmente faltaram ao débil presidente golpista ao longo
de toda a sua vida pública. Neste cenário de confronto devem
transcorrer os próximos dois anos e quatro meses, tempo que
terá o presidente golpista para implementar a sua agenda de
estabilização da economia e de equilíbrio político do país.
Isto se não ocorrerem novos e abruptos fatos como a abertura
de um processo de impeachment contra seu governo na
eventualidade de um cerco da oposição liderado pelo PT e
aliados ou até mesmo da sua instável base de governo, que
como ocorre sempre nos atos criminosos, se une apenas para a
perpetração de um crime.
Os maiores riscos residem no seu
próprio gabinete, quase todo ele envolvido em acusações de
corrupção que terão que ser estancadas, o que provavelmente
levará a um grande confronto com o estamento Judiciário, que
participou ativa e passivamente do processo golpista,
sobretudo a partir da operação Lava Jato, desencadeada em
Curitiba pelo juiz de primeira instância Sérgio Moro munido
por informações fornecidas pelos órgãos de segurança
americanos, segundo denunciou o site Wikileaks.
Tal é a fragilidade do governo
golpista que a primeira reunião ministerial da Administração
recém-empossada, que por breves minutos foi registrada pelos
meios de comunicação, colocou no ar para todo o país
palavras do novo presidente que jamais deveriam ter sido
pronunciadas em público. Expressões como
“Não vou tolerar!”
e “Isto aqui não é
brincadeira!”, pronunciadas por Michel Temer, revelam a
insegurança em que se encontra o seu governo desde o
primeiro momento.
Dirigindo-se aos seus ministros
como um bedel ou chefe de disciplina fez reprimendas e os
advertiu com palavras como estas:
– Não pode se
manifestar sem ter uma combinação conosco.
O que aconteceu em seguida, não
se sabe se já programado ou em decorrência das gafes do
mandatário entrante, foi a súbita retirada do ar da reunião
para evitar que a roupa suja do novo governo continuasse a
ser lavada em público.
Testemunhas implacáveis desta
grotesca página da História do Brasil, as câmeras de vídeo
registraram também momentos em que vários políticos que
participavam do golpe se comportaram sem a menor dignidade
exigida para o cumprimento de funções públicas como
cochichos e conversinhas ao pé do ouvido, e afagos
exagerados. Em outras imagens, o presidente do Supremo
Tribunal, Ricardo Lewandowski, e o Presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia, demonstraram visivelmente que não sabiam ou não se
lembravam no momento da letra do Hino Nacional, que
normalmente emoldura as cerimônias falsamente patrióticas de
posse.
Foi preciso que chegássemos ao
último dia do mês de agosto para que a História se
repetisse, desta vez como farsa. De forma fatalista, este
triste episódio encerrou mais um mês de agosto do decurso
trágico deste país tão rico em recursos e ao mesmo tempo
marcado pelo atraso, a ganância e a truculência das suas
elites.
O regime sionista neoliberal que
se apossou da União Europeia e a leva progressivamente à
ruína determinou que hoje a negação do holocausto deve ser
considerada um crime. Para que a nossa farsa seja completa,
só falta que o Congresso Nacional estabeleça que é proibido
o uso da palavra golpe
para designar o que aconteceu no dia de ontem. As penas
poderiam variar entre a obrigatoriedade de ler a coluna de
opinião do jornal O
Globo ou a exigência de assistir o
Jornal Nacional
todos os dias. O que for mais doloroso.
Sérvulo Siqueira |