1º de agosto de 2017

 

Quem tem medo das eleições na Venezuela?

Certamente o governo dos Estados Unidos que, inspirado pela doutrina do Destino Manifesto, acredita que o país deve continuar a ser por ainda muito tempo um quintal do Grande Irmão do Norte. Por certo a União Europeia que, herdeira do legado atávico do colonialismo que durante séculos escravizou e pilhou muitos povos no mundo, trazendo miséria e sofrimento à África e à América Latina, também não deve se alegrar com a manifestação de soberania de um pequeno país dos trópicos. Da mesma forma, os governos lacaios destas antigas potências imperiais: Argentina, Brasil, Chile, Peru, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Honduras, Guatemala, México e Canadá que – como cachorrinhos amestrados do grande capital – manifestaram o seu desagrado diante da votação, até porque com baixíssimo índice de popularidade deve lhes causar repulsa a convocação popular.

Nosso Brasil, agora sob a “administração” de Michel Temer e sua quadrilha condenou antecipadamente mais esta manifestação da vontade do povo. Na condição de moleque de recado da política externa de Washington, o atual chanceler Aluísio “500 Mil” Nunes Ferreira, um notório bandidão nos anos 1960, se apressou em condenar a convocação da Assembleia Constituinte, o que certamente não causou nenhuma surpresa.

Surpresa, no entanto, podem ter despertado certas posições do Partido dos Trabalhadores, que muita gente ainda considera um partido de esquerda, onde alguns membros recomendaram moderação ao governo de Nicolas Maduro.

O que é que significaria exatamente esta “moderação”, quando se leva em conta as mais de 100 mortes causadas pelos setores da oposição que – armados e financiados pelos Estados Unidos – tem por objetivo criar um clima de guerra civil no país para se apoderar das maiores reservas de petróleo do planeta?

Estariam os petistas falando da mesma moderação que, por exemplo, levou a antiga presidente Dilma Rousseff a jamais interferir nas ações notoriamente políticas da Polícia Federal, a permitir os descalabros do verdugo de Curitiba em seu propósito de arruinar a economia brasileira ou a adotar como programa as ideias do candidato derrotado?

As eleições venezuelanas, no entanto, a despeito de uma série de empecilhos criados pela oposição – bloqueios de rua, intimidações físicas com mortes de partidários do governo, assassinatos de candidatos, queima de urnas e até mesmo de cidadãos comuns, atentados a policiais com explosões de prédios públicos, etc. – correram em calma e contaram com uma grande participação popular. No final da noite de domingo em Caracas, via-se uma imagem pouco comum no Brasil em dias de eleição: espetáculos de música em palanques montados em alguns pontos da cidade e um clima de festa entre a população.

Fica cada vez mais claro a diferença entre a herança do projeto de nação proposto por Hugo Chávez para Venezuela – que levou a uma maior conscientização por parte da população – e o modelo meramente assistencialista da era Lula no Brasil.

Embora ambos os projetos tenham se apoiado fundamentalmente na concessão de benefícios para a população mais pobre, o projeto de Chávez enfatizou a conscientização política dos venezuelanos, a formação de organizações populares, a proliferação das rádios comunitárias, a melhoria da educação, certamente com o propósito de produzir uma consciência que levasse ao estabelecimento de uma sociedade socialista.

Como sabemos, este objetivo nunca existiu nos governos de Lula da Silva e de Dilma Rousseff e – se porventura ocorreu um dia – jamais chegou a ser revelado publicamente. As metas destes governos pareciam ser o superávit primário, o risco de investimento − sempre determinado pelas agências norte-americanas PriceWaterhouse, Standard and Poors e Fitch, que estão à serviço dos projetos imperiais americanos – a responsabilidade fiscal, etc., políticas que fazem parte do receituário ortodoxo da política econômica do neoliberalismo.

Neste contexto, o programa Bolsa Família – idealizado pelo Banco Mundial – deve ser visto como uma esmola, uma verdadeira merreca para a ralé, instituída para que esta não criasse muitos problemas à implementação do modelo neoliberal. No entanto, o estrato dominante da sociedade brasileira – fundamentalmente racista e escravocrata – aproveitou-se de um momento de fragilidade e de uma conjuntura internacional desfavorável a estes projetos e, valendo-se de todos os expedientes legais e ilegais – aboliu alguns avanços e buscou recompor a velha ordem, embora enfrente muitos obstáculos para a consolidação deste projeto no momento.

Tendo ascendido ao poder mercê de um discurso moralista de combate à corrupção, começa agora a se dar conta de que criou um monstro que poderá vir a devorá-lo e neste sentido aparecem rachaduras em seu antigo monolitismo que revelam a diversidade dos grupos que o compõem e seus objetivos de poder.

O Brasil vive uma crise de grandes proporções no momento e há o risco de que se crie uma atmosfera muito favorável ao surgimento de candidatos do tipo “salvadores da Pátria” – eles na verdade já estão aí – e que oferecem um apelo muito favorável ao autoritarismo, aos interesses do mercado e às politicas sociais de auditório, como definiu com muita precisão Dilma Rousseff o programa de um conhecido animador de televisão. Caso seja absolvido em segunda instância pela justiça, Lula da Silva iria se juntar a este elenco de salvadores da pátria, com a vantagem de já ter estado lá e desfrutar de altos índices de popularidade e a desvantagem de apresentar uma alta rejeição por ter sido demonizado durante um longo período de tempo pelos meios de comunicação.

A simples popularidade não será, entretanto, suficiente para que Lula possa recuperar um país como o Brasil – especialmente após o monumental processo de destruição a que está sendo submetido no momento – e será necessário que ele tenha um programa. Por certo, não bastará um projeto semelhante ao que implantou nos anos em que esteve no poder uma vez que as circunstâncias mudaram e o próprio modelo assistencialista que adotou já mostrou a sua face conservadora e, até mesmo, reacionária.

É exatamente a criação de um novo projeto social para Venezuela – livre do assistencialismo e independente do modelo exportador do petróleo – que a convocação da Assembleia Constituinte por Maduro busca alcançar. Caso este objetivo se concretize, poderemos ver surgir na América Latina uma sociedade socialista em um país com recursos naturais suficientes para obter ampla autonomia e independência  e assumir uma posição de vanguarda no processo de libertação dos países emergentes.

Enfraquecido por sucessivas derrotas e agora escorraçado por Rodrigo Duterte, na Filipinas, o império norte-americano deverá ir à forra mas sem o apoio do exército venezuelano ninguém sabe se poderá ser bem-sucedido.

A grande participação popular nas eleições mostra que a Venezuela poderá defender seu país com muita organização e capacidade de luta. As imagens de grandes filas de votantes, esperando com disciplina e paciência o momento de exercer o seu voto num país onde este não é obrigatório devem ser interpretadas por aqueles que planejam derrocar a herança de Chávez como um desafio a ser superado.

Em qualquer circunstância, nenhum desafio ao império dos gringos – que embora pareça um pouco fragilizado ainda demonstra uma grande força de destruição – poderá ser conduzido sem uma imensa capacidade de luta. Esta é a lição que a Venezuela está dando aos países da América e principalmente para aqueles que, mais recentemente, ousaram tentar escapar ao diktat de Tio Sam, inclusive o Brasil.

Resta saber como Lula da Silva e seu Partido dos Trabalhadores poderão se  conduzir com “moderação” diante dos conflitos que estão por vir.

  

Sérvulo Siqueira