As ambuiguidades da palavra e as ilusões da imagem

 

                                                                    Sérvulo Siqueira

 

                                                 Uma harmonia invisível é mais intensa que outra visível.

                                                                          Heráclito

                                             

Após ter atravessado séculos como uma representação simbólica do real, a imagem chegou ao século 20 como a forma mais evoluída do realismo plástico. O cinema e a televisão irão exprimir de modo mais convincente essa obsessão ardente de verossimilhança.

É costume se dizer que foi o líder revolucionário Vladímir Ilitch Lênin quem primeiro vislumbrou as possibilidades carismáticas do cinema. No entanto, ainda em 4 de julho de 1917, o Chefe do Estado-Maior da Alemanha, General Erich Ludendorf, já alertava o Ministério da Guerra do Império, em Berlim, para o fato de que a guerra demonstrou a superioridade do cinema como meio de informação e persuasão: “Os filmes não perderão sua importância durante o resto desta guerra como meio de convencimento político e militar”.

Apesar de todos os tratados e acordos de paz, nenhuma outra imagem indica de forma mais clara o final da 2ª guerra do que a foto do soldado hasteando a bandeira soviética no Reichstag, em Berlim.

Uma lição que não deixou de ser levada em conta pelos norte-americanos ao final da 2ª Guerra Mundial, quando constituíram no Escritório de Serviços Estratégicos (OSS, na sigla em inglês), antigo órgão de espionagem ianque, uma equipe dirigida por John Ford que remontou imagens registradas por cinegrafistas do 3º Reich e as utilizou como uma peça acusatória contra oficiais nazistas no Tribunal de Nuremberg.

O final do século 20 marca também o oblívio do cinema e de seus jornais da tela como grande arma de propaganda. É a televisão que vai acelerar o fim da intervenção americana na Indochina. As guerras do Vietnã e do Iraque – transmitidas ao vivo e simultaneamente – vão per­mitir a um cidadão norte-americano assistir um chefe de polícia abrir um rombo na cabeça de um prisioneiro em plena via pública enquanto bebe uma lata de cerveja na sala de estar da sua casa ou contemplar uma impressionante demonstração da mais sofisticada tecnologia em bombardeios aéreos, como se fossem jogos de videogame.

E não é por acaso que o rádio e a televisão foram considerados como armas de guerra na Iugoslávia, enquanto os aviões invisíveis da OTAN atiravam contra retransmissoras e antenas parabólicas.

Na verdade, nenhuma outra linguagem deste século esteve tão intimamente ligada ao nosso modo de ser quanto a chamada Sétima Arte. Desde o desabrochar da Segunda Revolução Industrial – com os Irmãos Lumière e a chegada do trem à estação ferroviária – às in­venções futuristas de Georges Méliès e sua Viagem à Lua, passando pelas duas Grandes Guerras, a Revolução Bolchevique, o triunfo e a derrocada do nazismo e do fascismo, a Guerra Civil Espanhola, a bomba atômica, as lutas libertárias do Terceiro Mundo, os novos padrões de comportamento com sua moral permissiva, a alucinante erupção do rock e dos Beatles, o Woodstock, as drogas e a contracultura, e até mesmo a nova padronização do tênis, do jeans e da T-shirt, tudo enfim passou em nossa era pela tela caleidoscópica desta gigantesca usina de sonhos.

Ao mesmo tempo em que alimentou o universo imaginário do homem do nosso século e introduziu em seu inconsciente, às vezes de maneira subliminar, as noções da simultaneidade de eventos, da descontinui­dade de tempo e de espaço, da aceleração da velocidade e da câmera lenta – através da montagem visual alternada e de atração – das fusões e das superimpressões, da sugestão de volta ao passado e da projeção para o futuro, além da criação de novas portas de percepção para o sonho e a fantasia, o cinema contribuiu para a planetarização do nosso espaço ao nos trazer hábitos, costumes, idiomas, indumentárias, gestos e peculiaridades de culturas e seres das mais distantes regiões da Terra, no momento em que a informação é o bem mais precioso de que dispomos.

No início da década de 1950, em resposta a uma enquete da Rádio Suíça sobre a possibilidade de o teatro reproduzir o mundo atual, o dramaturgo alemão Bertolt Brecht afirmou que isso somente poderia acontecer se o teatro fosse capaz de representar um mundo suscetível de ser modificado.

Foi o poeta Vladímir Maiakóvski quem melhor proclamou a relação entre o cinema e a revolução, em manifesto publicado em 1922: “Para vocês, o cinema é espetáculo. Para mim, é quase uma contemplação do mundo. O cinema é o fator do movimento. O cinema é o renovador das literaturas. O cinema é o destruidor da estética. O cinema é a ausência do medo. O cinema é o esportista. O cinema é o semeador das ideias”.

Soube o cinema representar as intensas transformações da nossa época? Teria a Arte do Movimento capturado com fidelidade as grandes mudanças por que passou o nosso tempo? No mesmo manifesto publicado em Moscou, em 1922, Maiakóvski já advertia: “Mas o cinema está doente. O capitalismo lhe enevoou com ouro os olhos. Hábeis empresários conduzem-no pela mão através das nossas cidades. Recolhem dinheiro, titilando o coração com assuntinhos chorosos”.

Como uma arte da imagem e do som, o chamado cinema impuro se empenhou em adaptar as matrizes dramáticas da literatura e do teatro para criar a variedade dos seus gêneros. De outra parte, S.M. Eisenstein deduziu o princípio cinematográfico da montagem a partir do ideograma chinês.

Entretanto, ao propor a teoria da montagem de atrações como a grande síntese dialética da imagem, Sergei M. Eisenstein acreditava que “o dualismo na esfera dos sentimentos e da razão deve ser completamente superado por esta forma de arte”. Segundo o cineasta, seria “necessário devolver ao processo intelectual o seu fogo e a sua paixão, para submergir o modo abstrato de pensamento na matéria fervente da realidade”.  

Imagens do leão em várias posições como metáfora da revolução vitoriosa (Encouraçado Potemkin, 1925).

A busca de um cada vez maior realismo do som e da imagem levou, algumas décadas depois, à parafernália eletrônica de efeitos especiais dos filmes americanos e à explícita lógica de um Império dos Sentidos, por exemplo, enquanto cabia ao “cinema pobre dos jornais de atualidades apagar as suspeitas da presença de sangue e lágrimas, assim como uma calçada é lavada quando é tarde demais e o exército já atirou na multidão”, como observa Jean-Luc Godard em seu História(s) do Cinema.

O palimpsesto se transformou em palinódia. O final do século 20 e o início do novo milênio terminaram por estabelecer o começo do descrédito da imagem como a primordial representação do real. O uso abusivo dos poderes técnicos de prestidigitação visual, a saturação dos fakes e dos clones fabricados, a encenação gráfica montada para o Jornal das 8, em que guerreiros do Salão Oval da Casa Branca colocam palavras árabes na boca de Bin Laden incompatíveis com a sua expressão labial, acabaram por comprometer o falso realismo da indústria do entretenimento.

Como a palavra e a representação visual não foram capazes de nos oferecer uma janela transparente para a realidade, Godard nos lembra que, “assim, por quase 50 anos as pessoas da câmara escura, das salas mal iluminadas, queimaram o imaginário para esquentar a sua realidade”

─ Agora, a realidade está se vingando e exige lágrimas verdadeiras e sangue verdadeiro, conclui.

Por quase 100 anos, a palavra falada – nos seus mais diversos idiomas, acepções e caracteres gráficos – vem inundando as telas da Sétima Arte. Pode-se dizer que, desde a segunda metade do século 20, talvez nenhum outro diretor se serviu com mais assiduidade da forma literária do que o autor de História(s) do Cinema. Se em La Chinoise, realizado em 1967, uma sala de uma célula maoísta exibia o slogan de que “é necessário confrontar ideias vagas com imagens claras”, 51 anos depois e mais de uma centena de filmes realizados, o diretor reverte a proposta dos militantes de então: Imagem e Palavra (Le livre d’images, 2018), ao contrário, apresenta imagens pouco claras, distorcidas, submetidas a vários tratamentos gráficos, fora de foco e confrontadas a ideias e a palavras nem sempre muito elucidativas. Em entrevista sobre o filme, Godard incorre também em enganos e contradições quando, por exemplo, afirma que o dedo da pintura de João Batista de Leonardo da Vinci – mostrado no filme – aponta o lado em que sopra o vento e não a cruz ao alto, como revelou a recente restauração da tela.

 

Cena de La Chinoise

Ao incorporar parcialmente as palavras de Elias Canetti em O Território do Homem e de Images en paroles, escrito por sua mulher Anne-Marie Miéville, Jean-Luc Godard – no limiar de seus 90 anos – conclui seu mais recente trabalho lamentando a inocuidade da expressão verbal em meio ao imenso ruído da nossa contemporaneidade e reconhecendo assim a impotência da ação intelectual:

─ Nunca estamos suficientemente tristes para que o mundo seja melhor. A terra abandonada, sobrecarregada de letras do alfabeto, sufocada pelo conhecimento e quase não há ouvidos que escutem.                 

Pintura restaurada do João Batista de Leonardo da Vinci.