21 de abril de 2009
Considerando os enormes preparativos
que a precederam, fracassou rotundamente a Cúpula das Américas, um
encontro de todos os países da América que não conta com a participação
de todos os países da América – por imposição do império americano.
Desta vez, a tentativa de tapar o sol
com a peneira veio cercada por preparativos diplomáticos destinados a
desfazer a imagem criada pelo genocida George W. Bushinho e procurou
apresentar o novo presidente americano como o portador de uma renovada
“política da boa vizinhança”, velho ersatz de que se servem os gringos
quando querem nos usar para algum propósito em seu benefício. Assim,
emoldurado por uma aura de homem amável e cordial, Barack Hussein Obama
chegou à capital de Trinidad e Tobago, uma colônia de férias do Caribe
para cidadãos com alguns recursos, trazendo a todos os países americanos
a promessa de míseros cem milhões de dólares e suaves medidas de
abrandamento do implacável embargo que os Estados Unidos vêm mantendo
contra Cuba há quase 50 anos.
Curiosamente, essa imagem de
cordialidade e bonomia – mais uma vez ecoada pelos meios de comunicação
do continente – é atribuída a alguém que vem persistindo nas mesmas
políticas coloniais de destruição no Afeganistão, Iraque e Paquistão e
na continuidade da estratégia genocida de Israel na Palestina
patrocinadas por seu antecessor e que já causaram a morte de mais de
dois milhões de pessoas, além do deslocamento de outros cinco milhões de
seres humanos para vários cantos do planeta.
A despeito de toda a pompa que o
cercou, o presidente norte-americano não conseguiu evitar a participação
em cenas que – no mínimo – comprometeram o seu conhecimento da história
dos povos da América Latina, a quem ele supostamente teria vindo
seduzir. Ao ser presenteado por Hugo Chávez com um exemplar do livro As
veias abertas da América Latina, Obama acreditou ser o presidente da
Venezuela o autor desta obra tão importante para a nossa cultura. A
notória rede de televisão CNN, braço indispensável da máquina de
propaganda norte-americana, se apressou em dizer que a oferta de Chávez
a Obama havia transformado um obscuro livro em repentino sucesso de
vendas, esquecendo-se – ou provavelmente desconhecendo – que desde o seu
lançamento, em 1971, a obra do uruguaio Eduardo Galeano já teve mais de
70 edições em espanhol (Siglo XXI), 56 edições em português (Editora Paz
e Terra) e outras tantas em diversos idiomas em todo o mundo, inclusive
o inglês e o francês.
O episódio indica na verdade o
profundo abismo que separa a cultura norte-americana branca, anglo-saxã
e protestante do universo cultural e étnico da América, especialmente
aquele que sofreu a colonização espanhola e portuguesa, e possui um
caráter predominantemente mestiço e católico.
Assim como os países da América, os
Estados Unidos também foram colonizados por europeus mas – ao contrário
de todos os outros – se mantiveram como o único que preservou as
características e o modo de ser de seus colonizadores. Imersos no seu
próprio isolacionismo, os americanos – como nos acostumamos a chamá-los
– parecem viver numa bolha e voltados apenas para si próprios ou suas
contrapartes inglesas na Europa. As constantes pesquisas – técnica de
consulta popular em que se destacaram – revelam com frequência o pouco
conhecimento que têm acerca do que acontece fora dos seus limites
territoriais. Na década de 80 do século passado, uma sondagem entre os
jovens do país mostrou que a sua grande maioria confundia a localização
geográfica dos Estados Unidos e do Brasil além de não ser capaz de
distinguir o significado de hemisfério norte e hemisfério sul. Em 1999,
durante o bombardeio da Iugoslávia, uma consulta mostrou que mais de 80%
dos cidadãos norte-americanos não tinham a menor ideia sobre onde estava
localizado o Kosovo, região que teria causado a invasão da OTAN. Ainda
recentemente, apesar dos generalizados clamores internacionais contra as
brutais práticas do Exército de Israel em Gaza – bombardeio
indiscriminado de civis, igrejas, escolas e campos de plantação, uso de
armas de destruição proibidas por convenções internacionais, etc. – os
americanos ainda creem que os judeus continuam a ser as vítimas de uma
guerra em que suas forças são incomparavelmente superiores às do
adversário. Certamente, isso tem uma causa e grande parte da
responsabilidade pode ser atribuída ao baixo nível do ensino americano e
à contínua manipulação que os cidadãos do país sofrem para apoiar as
políticas de um Estado que cada vez mais se confunde com os interesses
corporativos. O mais poderoso instrumento deste processo de manipulação
são os meios de comunicação do país, os seus “grandes partidos
políticos”, como já foram chamadas no passado as redes de televisão CBS,
NBC e ABC. Hoje, na verdade, esses partidos seriam quatro, acrescidos da
rede de informação CNN, que tem estado presente na formulação
estratégica da política norte-americana desde a Guerra do Golfo, em
1990.
Com a ascensão dos neoconservadores
de George W. Bushinho e Richard Cheney, uma outra entidade do pior
jornalismo emergiu no cenário dos Estados Unidos da América: a cadeia de
televisão Fox e seu proprietário, o patriarca da imprensa marrom Rupert
Murdoch.
Sobre todos esses fatos e certamente
muitos outros a população dos Estados Unidos permaneceu ignorante ou mal
informada e a razão para isso foi o desejo de que os cidadãos do país
tivessem a sensação de que a política do Estado norte-americano era
conduzida com equidade, equilíbrio e critérios humanitários.
As dimensões continentais do país,
ladeado por dois grandes oceanos e tendo apenas duas fronteiras, levaram
a uma visão maniqueísta: a parte ao norte é benigna, vista como a
repetição do mesmo; já a outra ao sul, com os latinos do México, é
perigosa e traiçoeira, como o têm mostrado de maneira quase ininterrupta
os filmes produzidos em Hollywood. Por outro lado, há contradições: o
norte, gelado, não apresenta grandes atrações. Já o sul, caliente embora
perigoso, é fascinante, tem sol e boa comida e oferece sempre o pretexto
para fugas românticas ou escapadas à ação da lei, com coquetéis de
marguerita e canapés de camarão à beira-mar, emolduradas por canções
executadas por mariachis.
Mergulhados nesta bolha, conduzidos
desde a infância pela escola – que segrega informações sobre Geografia
Geral e a História da Humanidade e pela igreja protestante tradicional –
sem mencionar os novos cultos neopentecostais, que cresceram de forma
desproporcional nos últimos tempos – os americanos do norte ofereceram
durante um longo tempo um cheque em branco aos dirigentes do país para
que tomassem decisões relevantes sobre os destinos da nação. Nem tudo,
porém, foi mero torpor durante esse processo e não se pode esquecer a
Marcha de Washington e outras enormes manifestações populares pelos
direitos civis, assim como as passeatas que levaram ao fim da Guerra do
Vietnã no início dos anos 70, além da existência do movimento hippie e
dos Panteras Negras. No entanto, seria importante lembrar também que
esse nível de consciência atingiu apenas uma pequena parcela de sua
população.
Apresentado como o candidato da
mudança, Barack Hussein Obama, um legítimo representante do melting
pot americano – filho de pai queniano e mãe americana nascido no
Havaí e criado na Indonésia – deve ser visto como um fato radicalmente
novo nos costumes políticos americanos. No entanto, se sua eleição
evidenciou um legítimo desejo de mudança do povo americano, a política
posta em prática por seu governo tem se mostrado – em praticamente todos
os aspectos – como uma continuação das práticas corporativas e
militaristas do seu malfadado antecessor. Tantos insucessos têm
colecionado em tão pouco tempo a administração de Obama, que já se teme
pela sua própria sorte em meio a uma terrível crise financeira, a uma
desenfreada competição econômica sem quartel e ao pesado legado do
governo anterior.
Enfraquecido por estratégias
coloniais sem fim, que levaram inclusive à doutrina da guerra
preventiva, aberração histórica e excrescência jurídica criada para
justificar o controle e a militarização de uma sociedade, os Estados
Unidos se isolaram ainda mais no seu próprio continente. As atitudes
tomadas por Barack Obama até agora mostram que pretende manter a mesma
postura colonial de antanho e, para ficarmos num conceito acadêmico,
mudar apenas na forma sem alterar substancialmente o fundo.
Neste sentido, a política montada
pelo novo presidente – que acreditou poder obter apoio de seus
congêneres americanos baseado apenas no próprio carisma – não parece ter
sido bem-sucedida. Ao final da Cúpula das Américas no último domingo,
dia 19, os Estados Unidos pareciam na verdade estar mais desconectados
da América do que nunca. Ao insistir em manter um cerco econômico,
financeiro e comercial contra Cuba e não permitir a independência de
Porto Rico, o poderoso império não consegue mais convencer toda a
América apenas com palavras. Não faz sentido falar em antiamericanismo
de Hugo Chávez quando, ao se colocarem nos últimos cem anos contra todos
os anseios dos países do continente, são exatamente as políticas dos
Estados Unidos que têm sido antiamericanas. A quantia de US$ 100 milhões
oferecida por Obama, que talvez só tenha importância para países muito
pequenos, parece irrisória diante do capital inicial de seis bilhões de
dólares do Banco do Sul, planejado para ser estabelecido em julho pelo
Brasil, a Argentina e a Venezuela, e soa até mesmo grotesca quando
comparada aos trilhões que o governo americano acabou de doar aos
banksters do seu país. Por outro lado, o programa de cooperação
estabelecido pela Venezuela e Cuba com mais de vinte países do
continente é muito mais abrangente do que essas migalhas americanas.
De outra parte, a declaração emitida
pelos países da Alternativa Bolivariana para as Américas (ALBA) se
mostra muito mais coerente com o momento atual e busca analisar em
profundidade a crise econômica que vivemos. O documento final, assinado
pelos governos da Bolívia, Cuba, Dominica, Honduras, Nicarágua e
Venezuela, propõe a criação de um modelo econômico que se fundamente “na
solidariedade e complementariedade e não na competição; na harmonia com
nossa mãe terra e não na pilhagem dos recursos naturais; na diversidade
cultural e não no esmagamento de culturas e imposição de valores
culturais e estilos de vida alheios às realidades de nossos países; e em
um sistema de paz baseado na justiça social e não em políticas e guerras
imperialistas”.
A declaração considera, em síntese,
que este novo modelo alternativo ao capitalismo deve recuperar a
condição humana de nossas sociedades e povos e não reduzi-los a simples
consumidores de mercadorias.
Um filho se aproxima do pai e lhe
pergunta:
– Pai, os russos são nossos amigos
ou nossos irmãos?
O pai responde:
– Não, filho. Os russos são nossos
irmãos.
– Por que?, pergunta o filho.
– Os amigos... a gente escolhe,
responde sabiamente o pai.
Na nossa situação, em que os
personagens são outros mas as circunstâncias muito parecidas, também
sabemos que o Grande Irmão não é propriamente o nosso melhor amigo.
Talvez, para lembrar o inesquecível personagem criado por Jô Soares,
poderia ser considerado “muy amigo”, ironia usada para indicar o
sentimento oposto. O certo é que o rei já está nu há muito tempo. E, ainda por cima, andou levando umas sapatadas recentemente...
Sérvulo Siqueira |